A cerimónia solene de abertura do Ano Judicial constitui um momento privilegiado para uma reflexão conjunta sobre os desafios que o Direito e o sistema judicial enfrentam no nosso tempo. Mas é também uma oportunidade singular para prestar homenagem aos magistrados portugueses e a todos quantos, no dia-a-dia, trabalham nos nossos tribunais. Aos profissionais do foro, aos funcionários judiciais, e, acima de tudo, à magistratura judicial e do Ministério Público, é devida uma palavra de reconhecimento pelo papel desempenhado na afirmação de Portugal como um Estado de direito democrático.
O debate sobre a Justiça convoca necessariamente uma reflexão sobre o Direito e a legislação. Na verdade, não é possível analisar os problemas com que a Justiça se defronta sem ter presente as leis que nos regem, pois é aos tribunais, em primeira linha, que compete aplicar as opções normativas do legislador aos feitos que lhes são submetidos a julgamento.
À jurisprudência e aos intérpretes cabe, de algum modo, uma ação criadora de Direito, estando há muito ultrapassada a conceção que encarava os juízes como uma mera «boca da lei», que se limita a aplicar a vontade do legislador. Em todo o caso, é a lei que os juízes devem aplicar, pelo que uma reflexão sobre a Justiça sempre haverá de começar por uma análise da qualidade da legislação vigente no País.
Sendo esta a última ocasião em que, como Presidente da República, tenho a honra de estar presente perante os principais protagonistas do nosso sistema de justiça, entendi ser meu dever dar público testemunho da minha experiência de intérprete, aplicador e defensor da «lei das leis», a Constituição da República Portuguesa.
Quando tomei posse, no início dos meus dois mandatos, jurei cumprir e fazer cumprir a Lei Fundamental. Penso ter agora o imperativo de transmitir aos legisladores e aos aplicadores do Direito o produto da minha reflexão sobre a arquitetura constitucional dos poderes do Estado e, em particular, sobre o alcance e o sentido que a função presidencial adquire nesse contexto.
Considerei ser este o momento certo para que tal análise seja percecionada de forma serena e responsável, enquanto registo e inventário de uma experiência da qual os responsáveis pela revisão da Constituição farão o uso que livremente entenderem.
Concluída a eleição dos deputados à Assembleia da República, e não estando em curso qualquer processo de alteração da Lei Fundamental, a circunstância de me encontrar perante este auditório tão qualificado pareceu-me especialmente oportuna para que uma reflexão dirigida à «comunidade dos intérpretes da Constituição» seja encarada sem quaisquer equívocos.
Não se pretende condicionar futuras revisões constitucionais. Trata-se de um testemunho para memória futura, passível de contribuir para eventuais revisões da Constituição, que terão ou não lugar de acordo com a vontade soberana dos Deputados e no momento que estes entendam ser adequado.
Entendo, aliás, que as traves-mestras da distribuição de competências que a Constituição define são ajustadas ao necessário equilíbrio das funções do Estado e ao respeito pelo princípio da separação e interdependência de poderes entre os diversos órgãos de soberania.
Naquilo que tem de essencial, o sistema de governo português revelou uma notável maleabilidade e uma excecional capacidade de adaptação às vicissitudes e à evolução da nossa vida política.
O conjunto de poderes atribuído ao Presidente da República é adequado e proporcionado ao lugar que a Constituição lhe atribui, na interação com o Parlamento, o Governo e os tribunais. No que se refere à distribuição interorgânica de competências, o sistema vigente demonstrou as suas qualidades e a sua eficácia. O sistema constitucional nunca representou impedimento à ação do Presidente da República e, de um modo geral, ao normal funcionamento das instituições democráticas.
Ao fim de dez anos de experiência como Presidente da República, cumpridos dois mandatos presidenciais por escolha do povo soberano, entendo que a Constituição de 1976, após as revisões de que foi alvo, confere ao Chefe do Estado as competências necessárias para o pleno exercício das suas funções e mostra-se ajustada ao modelo, que deve ser mantido, de eleição presidencial por sufrágio direto.
Considero, pois, que não se justifica uma substancial alteração do acervo dos poderes presidenciais, seja no sentido da sua redução, seja, ao invés, no sentido da sua ampliação.
Em 2016, irão ser comemorados 40 anos de vigência da Constituição. Nestas quatro décadas, o sistema de governo português – ora qualificado como semipresidencial, ora descrito como semiparlamentar – não só se revelou ajustado à consolidação do regime democrático como, através das suas sucessivas revisões, soube adaptar-se a diversas conjunturas políticas. Assim, e em síntese, mais do que ver ampliado ou reduzido o núcleo essencial dos poderes presidenciais, o que se impõe ao Presidente da República é uma leitura adequada e equilibrada da Constituição, a Lei Fundamental que jurou cumprir e fazer cumprir.
Existem, em todo o caso, aspetos pontuais que podem suscitar uma ponderação por parte dos titulares do poder de revisão constitucional, ou seja, os Senhores Deputados à Assembleia da República.
Desde há muito que é debatida a forma de designação dos juízes do Tribunal Constitucional. Como é sabido, trata-se de um debate que remonta à génese do Tribunal, ocorrida aquando da revisão constitucional de 1982. Logo na altura, diversas vozes, entre as quais as de prestigiados juristas, defenderam um modelo alternativo de designação dos juízes constitucionais, de modo a que a composição do Tribunal não fosse reservada quase em exclusivo à Assembleia da República, como sucede atualmente. A atribuição ao Presidente da República da faculdade de designar alguns juízes do Tribunal Constitucional poderia reforçar a perceção de independência que os Portugueses têm deste órgão de garantia da Constituição.
O Tribunal Constitucional desempenhou – e desempenha – uma função essencial na garantia da Lei Fundamental e na consolidação do Estado de direito. Pela independência dos seus juízes e pela qualidade da sua jurisprudência, firmada ao longo de décadas, o Tribunal Constitucional tornou-se um pilar da democracia portuguesa. Precisamente por isso, é agora possível uma reflexão mais amadurecida e distanciada sobre o modo de designação dos seus juízes e sobre o papel que, nesse quadro, o Presidente da República poderia ser chamado a desempenhar.
Num outro plano, a experiência que acumulei durante os meus mandatos, em que tive de analisar vários milhares de diplomas legislativos, permite-me sugerir que seja também ponderado o alargamento do prazo que o Presidente da República dispõe para requerer, ao Tribunal Constitucional, a fiscalização preventiva da constitucionalidade. O prazo atual, de oito dias, revela-se, por vezes, manifestamente insuficiente para que a Presidência da República proceda a uma apreciação preliminar da conformidade à Constituição de normas jurídicas, sobretudo quando estas se encontram inseridas em diplomas de grande complexidade ou, noutras situações, quando o Parlamento e o Governo concentram, num curto espaço de tempo, o envio de um elevado número de decretos para promulgação.
Seria, pois, aconselhável, em nome de um reforço dos mecanismos de garantia da Constituição, que o prazo de que o Presidente dispõe para requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade fosse alargado para limites temporais mais razoáveis e adequados à crescente complexidade, jurídica e não só, da legislação produzida pela Assembleia da República e pelo Governo.
Ainda noutro domínio, o regime de confirmação parlamentar do veto do Presidente da República é demasiado complexo, suscitando dificuldades de interpretação e de aplicação. Na verdade, coloca-se a questão de saber qual a maioria necessária para confirmar uma lei que tenha sido objeto de veto pelo Presidente da República. O n.º 3 do artigo 136.º da Constituição não refere expressamente a necessidade de obtenção de uma maioria de 2/3 dos Deputados para a confirmação dos diplomas cuja maioria de aprovação seja, ela própria, de 2/3.
O sistema de confirmação de diplomas vetados e a maioria exigida não são inteiramente claros, prestando-se a dúvidas interpretativas que não contribuem para a certeza e a segurança jurídica em matérias que podem ser alvo de grande controvérsia política. Os equilíbrios político-constitucionais aconselhariam a que a confirmação de um veto do Presidente da República ocorresse, em todos os casos, por maioria não inferior a 2/3 dos Deputados. Considero, em suma, que o regime jurídico da confirmação do veto presidencial mereceria ser clarificado em futuras revisões constitucionais.
Outra norma constitucional que desde há muito vem sendo questionada é a que faz depender a deslocação ao estrangeiro do Presidente da República de uma autorização prévia do Parlamento. Como sabem, a falta dessa autorização é cominada drasticamente com a sanção mais grave: a perda de mandato do Presidente da República. Trata-se de uma exigência cuja aplicação prática gerou já problemas no passado e que, no nosso tempo, surge como anacrónica e sem paralelo no direito comparado. Na verdade, este resquício das constituições monárquicas do século XIX não encontra justificação num mundo globalizado em que, por vezes, o exercício de funções presidenciais, nomeadamente de representação do Estado português no plano externo, exige uma atuação rápida e até urgente. Caberá ao legislador, se assim o entender, encontrar uma solução normativa que, por exemplo, preveja a dispensa dessa autorização em situações de urgência ou particularmente relevantes ou até, no limite, suprimir esta exigência constitucional.
Outro ponto que julgo merecer consideração prende-se com o lugar cada vez mais relevante que os bancos centrais assumem na vida económica dos diversos países e, em especial, na supervisão e regulação da atividade financeira.
A esta luz, o processo de nomeação do governador do Banco de Portugal deveria, porventura, ser consagrado na própria Constituição, à semelhança do que acontece com os titulares dos mais altos cargos do Estado português. A circunstância de a designação do governador do Banco de Portugal ser regulada por lei ordinária pode implicar uma perda de estabilidade no exercício do cargo, estabilidade essa que se afigura essencial para a sua independência e autonomia. Assim, deverá ponderar-se, até para o reforço da imagem de independência do Banco de Portugal, se a nomeação do seu governador não deveria ser feita por parte do Presidente da República, sob proposta do Governo e, eventualmente, após audição parlamentar.
Noutro contexto, e atenta a atribuição ao Presidente da República das funções de Comandante Supremo das Forças Armadas, entendo que a Constituição deveria prever que, tal como sucede com o Parlamento, o Chefe do Estado designasse alguns membros do Conselho Superior de Defesa Nacional. Isso contribuiria para diversificar a composição deste órgão de consulta para os assuntos relativos à Defesa Nacional e às Forças Armadas.
Num domínio que não se relaciona diretamente com o Presidente da República, mas que, por opção constitucional, acaba por ter incidência no exercício das suas funções, importaria igualmente ter em conta a experiência política dos últimos anos.
Refiro-me, neste particular, à figura dos Representantes da República para as Regiões Autónomas. O desenho institucional deste cargo, a par das competências que é chamado a exercer, tornam de todo em todo desaconselhável a consagração de um só representante da República para ambas as regiões, tal como já chegou a ser sugerido.
Na verdade, e até para a defesa dos interesses próprios de cada uma das regiões insulares no quadro de um Estado unitário, a existência de dois representantes da República é a solução que inequivocamente se afigura mais adequada.
Pelo contrário, a existir apenas um representante da República para ambas as regiões, este perderá a sua relação de proximidade e de conhecimento das especificidades políticas, económicas e sociais de cada uma. Ora, esse conhecimento é essencial, designadamente, para o exercício da competência de assinatura, veto e iniciativa de fiscalização da constitucionalidade dos diplomas regionais – competência que deve ser mantida. Sendo que, noutros casos, a existência de um só Representante da República para ambas as regiões impossibilitaria mesmo o desempenho das suas funções; por exemplo, no âmbito dos processos eleitorais ou na gestão de situações de emergência. Aquilo que fundamenta a opção histórica de 1976, que levou à consagração das autonomias regionais dos Açores e da Madeira, é também o motivo que justifica a existência de um representante da República para cada região autónoma.
Ainda no que se refere à ação dos Representantes da República, creio que se deveria reequacionar o modelo em que se previa a sua presença no Conselho de Ministros.
O que posso concluir, da minha experiência pessoal, é que a ausência dos representantes da República das reuniões do Conselho de Ministros dificulta, de forma muito gravosa quer para as regiões autónomas, quer para o Governo da República, uma comunicação ágil e eficiente entre o poder central e os órgãos regionais.
Os Representantes da República, no âmbito das suas competências próprias, poderiam atuar na intermediação entre ambos os poderes, evitando preventivamente o surgimento de potenciais conflitos e transmitindo de forma expedita as pretensões dos órgãos regionais ao poder central. Estou certo de que desse modo se aprofundaria a autonomia regional e a defesa dos interesses das populações insulares e, em simultâneo, se garantiria o necessário respeito pelo princípio constitucional da unidade do Estado.
Uma parcela significativa das tensões e problemas que no passado se fizeram sentir entre os órgãos de governo próprio das regiões e o poder central, conforme tive oportunidade de testemunhar, seria substancialmente reduzida através de uma interação mais próxima, a ser exercida pelos Representantes da República para os Açores e para a Madeira.
Senhoras e Senhores,
Estas são, em síntese, algumas reflexões em torno da prática constitucional, fruto de dez anos de experiência como Presidente da República. Apresento-as, porque tenho a certeza de que nenhuma das considerações que produzi irá aplicar-se no decurso do meu mandato.
A conclusão principal que alcanço é que a Constituição portuguesa, no que se refere à distribuição de poderes entre os órgãos de soberania, se afigura ajustada ao exercício das funções presidenciais.
A Constituição Portuguesa, como disse, irá celebrar 40 anos de vigência em 2016. Nessas quatro décadas, a Constituição garantiu o cumprimento de muitos dos ideais do 25 de abril: mais justiça social, a democratização do acesso à educação, um Serviço Nacional de Saúde para todos os Portugueses.
O modelo de Estado social inscrito na Lei Fundamental de 1976 favoreceu o surgimento e a consolidação de uma sociedade mais desenvolvida, mais justa e mais solidária. A Constituição assegurou também o respeito pelos princípios que nos distinguem e caracterizam como nação europeia, com destaque para o Estado de direito e a independência dos tribunais.
É com uma palavra de saudação à nossa Lei Fundamental e aos nossos tribunais que concluo esta intervenção.
Na pessoa do seu Presidente, Conselheiro António Henriques Gaspar, felicito o Supremo Tribunal de Justiça, instituição cimeira do nosso sistema judicial e que, todos os anos, acolhe esta cerimónia tão significativa.
Quero felicitar igualmente a magistratura judicial portuguesa e, na pessoa da Senhora Procuradora-Geral da República, a magistratura do Ministério Público.
Desejo a todos os magistrados portugueses um Bom Ano Judicial.
Muito obrigado.
© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016
Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.
Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.