Senhor Presidente da Sociedade de Geografia,
Senhor Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior,
Senhor Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas,
Senhor Chefe do Estado-Maior da Armada,
Senhor Professor Doutor José Pereira Osório,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
A Sociedade de Geografia de Lisboa tomou a louvável iniciativa de homenagear a insigne figura do almirante Gago Coutinho no dia em que se completam cento e quarenta anos sobre o seu nascimento.
Como Presidente da República, como Presidente de Honra da Sociedade de Geografia de Lisboa e, acima de tudo, como português, associo-me com todo o gosto a esta celebração.
O almirante Gago Coutinho foi um português de singular destino: o nosso grande sábio-marinheiro veio a alcançar a fama como navegador de avião num único voo.
É justo, no entanto, afirmar que Gago Coutinho merece ser recordado por muito mais do que a travessia do Atlântico Sul.
A instituição centenária em que nos encontramos é o local privilegiado para que possamos apreciar toda a dimensão do contributo de Gago Coutinho para a ciência e a cultura portuguesas.
É na Sociedade de Geografia de Lisboa, de que o homenageado foi sócio durante cinquenta e sete anos, que se celebra, anualmente, através da atribuição do Prémio Internacional Gago Coutinho, a memória do grande cientista.
Foi aqui recolhida a sua biblioteca e o seu espólio, os quais nos dão a imagem multifacetada de um distinto oficial que dedicou anos da sua longa vida ao estudo da história dos Descobrimentos e, em particular, da técnica náutica que os portugueses desenvolveram.
Neste local histórico sentem-se ainda os ecos das muitas conferências científicas que Gago Coutinho aqui proferiu.
Recordo, por exemplo, aquela ocasião, em 1902, em que a Sala Portugal da Sociedade de Geografia de Lisboa assistiu à exposição de um jovem oficial de marinha sobre um tema inovador: a telegrafia sem fios. Pioneiro também nesse domínio, o orador não hesitou, decerto para espanto de muitos, ao proclamar que aí estaria o meio de comunicação do futuro.
Ainda nesta sala, em 1920, Gago Coutinho apresentou aos sócios da Sociedade de Geografia de Lisboa - instituição estatutariamente vinculada à promoção da geografia como ciência -, a proposta de criação em Portugal de um curso de engenharia geográfica.
Gago Coutinho foi o primeiro entre nós a destacar o papel do engenheiro geógrafo, considerando ser o mesmo “necessário à tarefa geográfica secular que temos diante de nós”.
O engenheiro geógrafo é, sobretudo, um especialista no domínio do posicionamento. A sua melhor qualidade técnica é a de saber onde se está com precisão infinitesimal.
Eis uma qualidade unanimemente reconhecida ao almirante Gago Coutinho: ele sempre soube onde estava e sempre soube qual era o seu destino.
Em Timor, em Moçambique, em Angola, em S. Tomé, efectuou levantamentos geodésicos e topográficos, fixou fronteiras. Com meios relativamente rudimentares, realizou prodígios de exactidão.
A sua primeira obra como engenheiro geógrafo, realizada em Timor nos últimos anos do século XIX, foi recentemente utilizada, com grande proveito, na demarcação da fronteira entre a República Democrática de Timor-Leste e a República da Indonésia.
Esta profunda ligação ao espaço de língua portuguesa, que marca o seu trajecto como militar e como cientista, foi também evidenciada na travessia do Atlântico Sul.
O inspirado voo, realizado no ano do centenário da independência do Brasil, avivou a fraternidade entre as pátrias irmãs, como o demonstra a triunfal recepção que os aeronautas aí tiveram.
Recordar hoje o almirante Gago Coutinho é, por isso, também homenagear a unidade do mundo que fala português.
Sendo bem verdade que, como comecei por referir, o legado do almirante Gago Coutinho ultrapassa em muito a memória da travessia aérea do Atlântico Sul, não é menos verdade que esse voo foi a expressão culminante da sabedoria e da inventiva de um grande homem de ciência.
O empreendimento, vencendo ares nunca dantes navegados, foi arrojado. Feitos de igual valia já tinham sido completados por outros pioneiros da aviação. Mas nunca se fora tão longe no voo científico.
No seu diário de bordo, Sacadura Cabral, descrevendo o momento mais dramático da travessia, deixou claro o verdadeiro móbil dos aeronautas portugueses: se a gasolina acabasse e se vissem forçados a pousar, ao acaso, no meio do oceano, “ficaria por demonstrar aquilo que pretendíamos provar, isto é, que a navegação aérea é susceptível da mesma precisão que a navegação marítima”.
Foi, portanto, uma demonstração científica que os levou a arriscar tudo, incluindo a própria vida, naquele voo entre a Cidade da Praia, em Cabo Verde, e os penedos de S. Pedro e S. Paulo. Aí, após mais de onze horas sem beneficiar de quaisquer referências à superfície, num avião pequeno e demasiado lento, com a gasolina a esgotar-se no tanque, tiveram de descobrir na imensidão do Atlântico um minúsculo penedo com duzentos metros de comprimento.
Os cálculos do imperturbável Gago Coutinho não podiam falhar, sob pena de tudo terminar ingloriamente. Como de costume, não falharam. Feito extraordinário no momento em que a aeronavegação dava os primeiros passos.
Como foi possível? “Nós não fomos heróis” - explicou Gago Coutinho, dando nota da sua proverbial simplicidade – “Usámos de manhas de geógrafos, que se orientam pelo Sol e pelas estrelas”.
Manhas, talvez. Mas o certo é que ninguém antes se lembrara de as usar. Tratava-se, afinal, de inovações científicas. Inovações que permitiram um passo de gigante na história da aviação.
A travessia foi realizada com certeza antecipada quanto ao rumo seguido. A navegação depende do conhecimento exacto da posição em cada momento e da direcção e distância ao ponto de destino. Pois ao longo do caminho, Gago Coutinho e Sacadura Cabral sempre souberam exactamente onde estavam e qual o rumo e a distância até ao objectivo que tinham traçado.
Gago Coutinho serviu-se de um sistema integrado de navegação aérea que criou e aperfeiçoou. Sistema composto pelo famoso sextante de horizonte artificial, a que gostava de chamar astrolábio de precisão.
Sistema que também incluía métodos inéditos de cálculo e de pré-cálculo de tal forma apurados que em três minutos – e isto sem computador e sem calculadora electrónica - permitiam ao navegador Gago Coutinho registar no Diário de Navegação o local preciso onde se encontravam.
Assim dotados, os aviadores chegaram com absoluta precisão ao seu destino. Deste modo, para além da aventura humana assistiu-se a um prodígio científico. O grande pioneiro da aviação, o brasileiro Santos Dumont, bem o disse: “… o raid de Coutinho e Sacadura foi matematicamente realizado”.
O almirante Gago Coutinho era um espírito positivo, racional e matemático. Acreditava no método científico que desenvolveu a tal ponto que nele confiou serenamente a sua vida e a do seu companheiro de viagem.
O homem de ciência que homenageamos ensinou-nos que, para termos confiança em nós, precisamos de saber onde estamos e para onde vamos. Eis a mais profunda lição do eminente engenheiro geógrafo que foi o almirante Gago Coutinho.
Presto homenagem à memória de um grande português.
© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016
Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.
Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.