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Cerimónia de despedida das Forças Armadas
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Lisboa, 17 de fevereiro de 2016 ler mais: Cerimónia de despedida das Forças Armadas

Entrevista do Presidente da República publicada no semanário Expresso em 30 de Julho de 2011 Clique aqui para diminuir o tamanho do texto|Clique aqui para aumentar o tamanho do texto

– Festejaram-se os resultados da Cimeira [Cimeira Extraordinária da Zona Euro, realizada em 21/7/2011]. Mas, depois disso, há sinais que fizeram acalmar a euforia. As decisões tomadas são uma solução ou terá de se ir mais além?
– As decisões foram um importante passo em frente, mas isso não significa que tenham desaparecido as ameaças de instabilidade financeira na zona do euro. Até porque ao longo de muitos meses se criou um ambiente de desconfiança em relação a vários países quanto à capacidade de satisfazerem os compromissos. Tudo vai depender da determinação, vontade política e rapidez com que as decisões passem à prática. E nos últimos dias surgiu alguma cacofonia, diferentes declarações e interpretações quanto às decisões tomadas, que não vão no bom sentido.

– Já tínhamos assistido a isso...
– Sim, mas de qualquer forma ocorreu uma decisão muito importante: a flexibilização do Fundo Europeu de Estabilização Financeira, fazendo dele um mecanismo de solução de crises e dando-lhe capacidade de evitar contágios e combater movimentos especulativos. O Fundo passa a poder atuar no mercado secundário comprando títulos, a conceder empréstimos aos Estados para capitalização dos bancos, a poder abrir linhas de crédito para países com problemas de liquidez e, muito importante, pode continuar a apoiar os países com programas de assistência quando, ao terminar este e mesmo tendo cumprido tudo, os países não conseguirem ter acesso ao mercado para obterem financiamento. Tudo isto faz do Fundo um instrumento importante para a gestão de crises.

– Uma espécie de FMI europeu, de FME?
– É um passo no sentido da criação do que poderíamos chamar um Fundo Monetário Europeu. O abaixamento das taxas de juro e o alargamento do prazo dos empréstimos pelo menos para 15 anos, mas podendo ir até 30 e com um período de carência de 10 anos, significa que afinal se aceitou a ideia dos eurobonds para os países com assistência financeira. O Fundo emite no mercado internacional obrigações com garantias dos Estados e depois empresta, praticamente à mesma taxa, aos países que se encontram em situações de crise.

– São boas notícias?
– São, agora temos de saber se há vontade política clara dos Estados-membros para implementarem em pleno o que foi decidido e com rapidez. Espero que depois da decisão tomada no dia 21 os líderes estejam bem conscientes da ameaça que continua a pairar sobre o euro se não manifestarem essa determinação.

– Porque não há essa vontade política?
– Ela devia ser mais visível neste momento. O Conselho foi uma manifestação de vontade política, pelo menos no dia 21 de julho. O que interessa agora é a rapidez de pôr tudo aquilo em prática, sem hesitações e de forma clara.

– Portugal poderá renegociar o acordo da troika com base nas decisões tomadas?
– As decisões em nada alteraram os compromissos sobre políticas a executar pelo Governo português nos termos do Acordo de Assistência aprovado. Mas é sabido que ao longo destes três anos de execução haverá um diálogo continuado entre as autoridades portuguesas e a troika, e admito que podem chegar à conclusão que são necessários alguns aperfeiçoamentos. Ninguém dirá que o que está acordado é 100 por cento perfeito, mas não devemos falar nunca em renegociação, isso não deve passar pela cabeça de ninguém. Isto é, podem existir melhores formas de alcançar os mesmos objetivos, nem todas as soluções constantes do acordo podem ser 100 por cento perfeitas. Portugal vai beneficiar da descida das taxas de juro e do alargamento dos prazos, mas o mais importante é a declaração de que o nosso país, tal como a Grécia e a Irlanda, se cumprirem o programa, continuam a ser apoiados, caso o necessitem no final da vigência do programa. Se Portugal cumprir, seremos diferentes da Grécia. Devemos olhar para as decisões do Conselho Europeu como um estímulo, não como qualquer facilidade que nos foi concedida, porque nos vai ser exigido o cumprimento. E o cumprimento integral do memorando é o que melhor serve o interesse nacional.

– Mas há quem fale na necessidade de Portugal vir a pedir novo empréstimo...
– Se Portugal cumprir, não necessitará de outro programa de austeridade, pode é continuar a necessitar de apoio, caso os mercados continuem a revelar desconfiança. Isto é diferente do que aconteceu agora com a Grécia, que teve um novo programa de austeridade a troco de um novo empréstimo.

– As novas decisões não poderão ajudar a suavizar as duras medidas que se anunciam para Portugal?
– As medidas que estão previstas no memorando, na substância, não irão ser alteradas, porque são consideradas indispensáveis para que Portugal restabeleça os equilíbrios fundamentais nas finanças públicas e para que o país ganhe competitividade e credibilidade junto dos mercados. Mas pode-se chegar à conclusão, dos dois lados, que existem melhores respostas para alcançar os objetivos. Portanto, nós vamos ter mesmo de mudar de vida, temos que adaptar aquilo que gastamos à produção que conseguimos realizar e temos que poupar mais.

– Não há uma contradição entre o facto de as decisões do Conselho serem de maior integração (não quero dizer federalistas) e ao mesmo tempo estar a aumentar o euroceticismo na Europa?
– Vamos por partes. A criação de um mercado único instituiu a liberdade de circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas e abriu a porta para o federalismo monetário. Isto é, um Banco Central Europeu, uma moeda única, uma política monetária única e uma política cambial única. O federalismo monetário abriu por sua vez caminho para a coordenação das políticas orçamentais e de outras políticas económicas entre os Estados-membros, para que estas fossem coerentes com a política monetária única, de forma a assegurar a estabilidade macroeconómica da zona euro. Decidiu-se, por outro lado, que essa estabilidade seria realizada pela via do Procedimento dos Défices Excessivos e dos Programas de Estabilidade e Crescimento. Mas este mecanismo de coordenação falhou, a Comissão e o Conselho não realizaram a supervisão adequada dos Estados. Deixaram os Estados endividar-se em grande escala e construir grandes défices públicos. Vários foram os culpados, desde logo a Alemanha e a França, que flexibilizaram o Pacto quando violaram o défice. Quer dizer que os mecanismos de coordenação não estavam preparados para fazer face a uma crise da dívida soberana como aquela que veio a ocorrer. Agora, começou a trabalhar-se no reforço dos mecanismos de coordenação, o chamado Semestre Europeu, que passa a ser prévio à elaboração dos orçamentos pelos Estados. O caminho que se está a seguir é para colocar ao lado do federalismo monetário um federalismo orçamental mitigado. Não existe um grande orçamento comunitário, mas existe uma coordenação reforçada dos orçamentos dos Estados, de forma a que o conjunto seja algo que vai para além da simples soma das políticas orçamentais dos Estados-membros.

– Que pensa da criação do ministro das Finanças Europeu?
– O Senhor Trichet lançou a interrogação sobre se no longo prazo não teremos um mercado único, uma moeda única e um ministro das Finanças europeu. Este teria responsabilidades de supervisão nas políticas orçamentais e de competitividade e faria o acompanhamento direto – uma interferência maior – das políticas económicas dos países sujeitos a acordos de assistência. Não sabemos o que será a União Europeia no longo prazo, mas neste momento falar de um ministro das Finanças europeu é pura especulação. Mas olhemos para os acordos de assistência financeira que têm vindo a ser negociados: são já uma interferência bastante forte e direta nas políticas económicas nos países em situação de crise, estão a limitar a soberania! Temos que reconhecer que se todos nós na União Europeia vivemos num regime de soberania partilhada, em relação aos que se encontram em situação de crise...

– É uma soberania limitada?
– É limitada em maior grau, embora seja resultado de uma negociação.

– E como vê o fenómeno crescente do euroceticismo?
– Há muitas razões para a existência deste desencanto em relação ao projeto da União Europeia, que se apresenta com menor capacidade de mobilização, embora não de atração. Mas recordo-me de situações semelhantes no passado, da chamada euroesclerose europeia dos anos 80, e a Europa foi capaz de se renovar, criando o mercado único, Schengen, a moeda única. Espero que a Europa, talvez com outro tipo de lideranças, se venha a reencontrar. O facto de os líderes europeus já não terem memória da guerra e de a ameaça da União Soviética ter desaparecido, conta. Assim como conta o facto de os líderes europeus, com grande frequência, face aos insucessos domésticos, atribuírem as culpas a Bruxelas. Não os vemos sublinhar as mais-valias do projeto europeu. Depois, espalha-se a ideia de uma união europeia à deriva, com todas estas contradições, discursos populistas, cacofonias, hesitações. E os cidadãos também parecem ter hoje uma certa insegurança em sentido lato, por falta de emprego, sobre o seu futuro, a debilidade do crescimento económico. Tudo combinado favoreceu os movimentos eurocéticos e os nacionalismos. Mas não podemos julgar o projeto da União Europeia pelas dificuldades de hoje. É bom sublinhar, por exemplo, que o sistema de proteção social europeu não seria o que é hoje sem os 50 anos de progresso económico do projeto europeu, que é um caso notável.

– E as políticas conduzidas, a somar à falta de lideranças, não contribuem para a falta de fé na Europa?
– Uma Europa a 27 é muito diferente da Europa a 12, a que Portugal aderiu. Esse espírito de família de que falava Delors é muito mais difícil. Com o alargamento, avançou o intergovernamentalismo e enfraqueceram-se as instituições, de que é expressão clara a criação do cargo de presidente do Conselho Europeu. Eu sempre fui defensor do fortalecimento da Comissão, que é a expressão do interesse comum. É neste quadro que os grandes países emergem com uma influência muito grande. Desde o início que a Alemanha e a França são forças motoras do projeto europeu. Sempre foram influentes, mas hoje parece que estes dois Estados se substituem às instituições: reúnem-se e até convocam para participar os responsáveis das instituições! Ainda por cima de uma forma ostensiva. Nós precisávamos de instituições fortes e há uma deriva intergovernamental que não tem sido positiva.

– Mas isso ficou consagrado no Tratado de Lisboa...
– O Tratado, ao fazer a reforma das instituições, deu margem maior ao intergovernamentalismo. Nunca fui favorável à criação da figura do presidente do Conselho Europeu. Mas voltando à Alemanha, ela sempre beneficiou bastante da construção europeia e interrogo-me se a sua unificação teria sido possível sem a integração europeia. O chanceler Kohl dizia sempre que queria uma Alemanha europeia e não uma Europa alemã.

– A Senhora Merkel defende o contrário?
– Não quero julgar a Senhora Merkel. Mas seria positivo para a Europa que existisse uma Comissão forte onde o método comunitário se afirmasse mais. O intergovernamentalismo trouxe o peso acrescido de alguns Estados, o que acarreta maior desconfiança de outros, porque sentem que não estão a participar, o que contribui para o esbatimento do sentimento de pertença dos cidadãos a um projeto comum.

– O projeto europeu não corre o risco de desintegrar-se?
– Não. Isso só aconteceria em situações absurdas de total irresponsabilidade, que não me atrevo a antecipar. Seria dramático para a Europa, e muito negativo para o sistema económico e financeiro internacional. Os problemas são de tal complexidade que não têm solução apenas com a ação de um Estado isolado, mesmo que grande. Só pela atuação conjunta os problemas podem ser de facto resolvidos. Não acredito que algum líder queira ficar com a responsabilidade da desintegração do projeto europeu, que aconteceria no caso do fracasso total do projeto da moeda única. Nem que seja no último minuto, virá ao de cima a sabedoria dos líderes europeus. Esperamos que a tenham.

– O fracasso do euro podia ser esse fator de desintegração?
– Não acredito que vá acontecer.

– Considera que a atual crise é uma crise sistémica do euro?
– A princípio muitos pensaram que era só de alguns Estados. Curiosamente, é Portugal que acaba por desempenhar um papel importante no despertar para a necessidade de o Eurogrupo atuar, porque havia uma real ameaça sobre o projeto da moeda única.

– Está a falar dos acontecimentos recentes?
– Sim, na baixa de notação da agência Moody’s. Dissiparam-se as hesitações em relação ao caso da Grécia e tomou-se consciência de que era uma crise sistémica, que ia muito para além de um Estado individualmente considerado. Claro que há o reconhecimento da irresponsabilidade por parte de alguns Estados, mas – sublinho – houve também um falhanço da supervisão, que é uma responsabilidade de todos.

– Foi criticado por no passado não ter criticado as agências de rating, como agora o fez. O que mudou neste ano?
– A redução da notação da Moody’s no princípio de julho é uma situação totalmente diferente da que tinha acontecido no passado e a prova disso é que houve uma condenação quase unânime por parte dos países europeus e instituições. Isto nunca tinha havido anteriormente! Nunca se tinha assistido a uma reação dos países e instituições condenando a baixa de notação por uma agência de rating. É completamente diferente, porque havia factos novos positivos e nenhum negativo: as autoridades portuguesas estavam a começar a executar um programa de assistência financeira, comprometendo-se a aplicar as medidas necessárias à correção dos desequilíbrios internos e externos e ao reforço da estabilidade do sistema bancário. Esse programa tinha o apoio das três maiores forças políticas, representando mais de 85 por cento do Parlamento. E havia um Governo, dispondo de uma maioria confortável no Parlamento, determinado a aplicar na íntegra as medidas negociadas pelo anterior Executivo, e afirmando mesmo que ia mais além. Foi perante este quadro que começou a tornar-se mais forte a consciência da ameaça dirigida a toda a zona do euro, até porque depois começam alguns ataques especulativos em relação à Espanha e à Itália. Surpreende-me que pessoas que percebem alguma coisa de política económica não percebam a diferença da situação do início de julho face ao que tinha acontecido anteriormente. Nunca se tinha assistido a uma coisa destas.

– Mas isso também prova que a Moody’s nunca ligou ao que se passava na situação interna...
– Mas no passado não havia este Acordo, em que o País se comprometia de forma formal a concretizar as medidas necessárias para corrigir os desequilíbrios e reforçar a competitividade e a estabilidade do sistema financeiro. Não havia até julho falha nenhuma. Era a grande diferença. E talvez isso tenha influenciado a decisão europeia de reduzir a dependência das agências de rating.

– Acha positivo criar uma agência de rating europeia?
– Pode ser mais do que isso. Penso que estão a ser estudadas outras formas de reduzir a influência dessas instituições. Por exemplo, o BCE não devia mais ter em atenção as notações das agências para decidir se cede liquidez a um país. Como é que os líderes europeus aceitam que as suas decisões possam ser condicionadas por três agências americanas de rating? Surpreende-me. Falta aqui alguma liderança.

– Há uma falha de legitimidade democrática na Europa?
– Houve o reforço do papel dos parlamentos nacionais e dos poderes do Parlamento Europeu. Se alguma coisa ocorreu nas sucessivas revisões dos Tratados, foi a preocupação de reforçar a legitimidade democrática das instituições. O que há é uma dificuldade de os líderes europeus explicarem às suas opiniões públicas a importância do projeto europeu.

– Ainda se sente europeísta?
– É o nosso projeto. Isto é um projeto político, claramente, e a prova está no federalismo monetário, em que os países cedem um dos símbolos mais visíveis da sua soberania. Dir-se-á que, se cedem a moeda, estão preparados para outras cedências de soberania, para fazer a união política. No fundo, é este federalismo monetário, acoplado com a cooperação aprofundada das políticas económicas, a que se junta outro tipo de políticas, como a segurança interna, a justiça e outras. Agora, só falta o tal passo mais final, que é termos um dia um orçamento comunitário de dimensão federal, que financie as políticas de emprego, proteção social, inovação, ambiente, infraestruturas europeias e outras. Mas isso já não será na nossa geração. E depende da vontade dos povos da Europa.

© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016

Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.

Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.