Nelson Mandela é um combatente indomável pela liberdade, que ao longo de décadas de cativeiro nunca perdeu a esperança de viver num país onde todos os seres humanos fossem iguais, em dignidade e direitos.
Mandela é também um modelo de estadista, que se destacou no imenso Continente Africano pela integridade de carácter e pelo desapego ao poder. Sobretudo, pelo seu desapego ao poder pelo poder. Porque, para Nelson Mandela, o exercício do poder só faz sentido para servir os outros. E pelos outros, pelos seus irmãos que viveram sob um regime iníquo de segregação racial, Mandela empenhou-se, desde os seus tempos de estudante de Direito, na vida política sul-africana, o que lhe valeu ser condenado, em 1964, à pena de prisão perpétua. Mais de duas décadas depois, recusaria aceitar a oferta da liberdade condicional a troco da renúncia aos princípios porque combatera e em que nunca deixara de acreditar, mesmo nos momentos mais difíceis passados em Robben Island. Eis a prova de que nem vinte anos de cadeia são capazes de abalar as convicções firmes dos homens de causas.
Mandela seria libertado em 1990, por ordem do Presidente Frederik De Klerk e, em 1993, ambos seriam galardoados com o Prémio Nobel da Paz. A partilha entre Mandela e De Klerk do Nobel da Paz, porventura o mais prestigiante prémio a que alguém pode aspirar, simbolizou o sonho de uma África do Sul unida e o desejo de que rapidamente fossem saradas as feridas dos tempos do apartheid, um pretérito imperfeito, pleno de ódio e discriminação.
Em princípios de Outubro de 1993, Nelson Mandela visitou Portugal, numa altura em que as negociações entre o Governo da África do Sul e o Congresso Nacional Africano tinham chegado a um ponto em que já era irreversível a transformação daquele país numa democracia multirracial. Encontrei-me com ele no Palácio de São Bento, a 6 de Outubro, e da serenidade das suas palavras e da moderação dos seus propósitos extraí a conclusão de que me encontrava perante um homem a quem mais de vinte anos de cárcere não tinham deixado quaisquer ressentimentos nem desejos de vingança. Um homem que olhava para a frente, um visionário, que não procurava ajustar contas com o passado e com aqueles que o tinham mantido em cativeiro. Escrevi na minha Autobiografia Política: «Só um homem com uma estatura moral e qualidades humanas extraordinárias podia perdoar o sofrimento por que passara e apresentar-se liberto de sentimentos de ódio, de recriminação ou de vingança e ter a lucidez de optar pela via da negociação para o desmantelamento do apartheid, recusando a violência». Na altura, tinha 75 anos de vida, dos quais 27 passados na prisão. Percorrera um longo caminho pela liberdade, para usar as palavras que dão o título à sua autobiografia.
Aquela reunião com Mandela, em Lisboa, culminou um processo de negociações de Portugal com as autoridades sul-africanas, que envolveu também um encontro de trabalho que mantive com o Presidente Pieter W. Botha, em Outubro de 1988, no decurso do qual expressei a firme intenção de Portugal se manter alinhado com os seus parceiros europeus na condenação do apartheid. O encontro, como lembro na minha Autobiografia Política, «não correu nada bem». Como aí escrevi, «o Presidente Pieter Botha exibiu uma postura de dureza e inflexibilidade e o meu diálogo com ele foi muito difícil». Já antes, em 1987, reagira mal a uma carta que eu lhe enviara, manifestando satisfação pela libertação de Govan Mbeki e de outros presos políticos e incentivando-o a dar novos passos na via da reconciliação entre todos os sul-africanos. Tais passos vieram a ser dados, com coragem e determinação, pelo seu sucessor, Frederik De Klerk, que conheci pela primeira vez em 1989, também em São Bento. Visitou depois Portugal duas vezes, como Presidente da República, e com ele mantive relações cordiais, mesmo depois de deixar as funções de Primeiro-Ministro.
Ao evocar estes episódios, não pretendo regressar a um passado que deve ser passado. Mas, ao fim de algumas décadas de vida pública, julgo que devemos dar testemunho daqueles que connosco cruzaram e, sobretudo, daqueles que mais nos marcaram, como foi o caso de Nelson Mandela. E também devemos mostrar até que ponto a acção concertada dos Estados – neste caso, dos membros da União Europeia – pode ser um estímulo decisivo para a realização de transformações pacíficas no sentido da liberdade e da democracia. Orgulho-me do pequeno contributo que possa ter dado para fazer da África do Sul uma nação livre e democrática.
A estatura moral de Nelson Mandela permaneceu intacta desde que assumiu funções como Presidente da África do Sul. Após ter liderado um difícil processo de transição para um novo regime, abandonou o poder com a mesma simplicidade de sempre. A simplicidade dos gigantes.
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