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Cerimónia de agraciamento do Eng. António Guterres
Cerimónia de agraciamento do Eng. António Guterres
Palácio de Belém, 2 de fevereiro de 2016 ler mais: Cerimónia de agraciamento do Eng. António Guterres

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Mensagem do Presidente da República à Assembleia da República a propósito da não promulgação do diploma que cria o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil

Senhor Presidente da Assembleia da República

Excelência,

Tendo recebido, para ser promulgado como lei, o Decreto nº 68/XI da Assembleia da República, que cria o procedimento de mudança de sexo e de nome próprio no registo civil e procede à décima sétima alteração ao Código do Registo Civil, decidi, nos termos do artigo 136º da Constituição, não promulgar aquele diploma, com os fundamentos seguintes:

1 – O regime submetido a promulgação apresenta graves insuficiências de natureza técnico-jurídica assim como procede a um enquadramento controverso das situações de perturbação de identidade de género, segundo a opinião colhida junto de especialistas nesta matéria. É, por isso, desejável que a Assembleia da República proceda a um novo debate que permita congregar as várias opiniões sobre um tema de tão grande relevância.

2 – Não se põe em causa a necessidade de existência de um regime jurídico que regule, designadamente para efeitos de registo civil, os casos medicamente comprovados de perturbação de identidade de género que assumam um perfil e uma natureza tais que justifiquem a tutela do Direito.

3 – O regime jurídico que regule esta realidade deve consagrar soluções normativas claras e adequadas à prossecução de dois objectivos: por um lado, salvaguardar a fidedignidade do sistema público de registo e, por outro, conferir uma tutela jurídica mais célere e eficaz àqueles que comprovadamente dela careçam.

4 – O Decreto nº 68/XI, não assegurando que estes objectivos sejam alcançados, contribui, devido às deficiências técnico-jurídicas de que padece, para adensar situações de insegurança e de incerteza, inquestionavelmente lesivas para aqueles que, de uma forma comprovada com rigor, possuam uma perturbação da identidade de género.

5 – Nos termos do regime que o Decreto nº 68/XI visava instituir, o requerimento a apresentar na conservatória do registo civil para mudança de sexo e de nome próprio deve ser acompanhado de um “relatório médico que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género, também designada como transexualidade, elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro”.

6 – Porém, o diploma em apreço é, desde logo, omisso quanto aos critérios de diagnóstico da perturbação de identidade de género.

Não se definindo esta perturbação nem, tão-pouco, os respectivos critérios de diagnóstico, a interpretação da norma será deixada por inteiro à apreciação livre da entidade emitente do relatório o que, sem o devido controlo, não oferece as garantias de rigor técnico que devem estar presentes em casos particularmente delicados para a salvaguarda da dignidade da pessoa humana, como são os que ocorrem neste domínio.

7 – Não por acaso, de acordo com os critérios da classificação internacional de doenças – ICD10 –, e, bem assim, de acordo com as melhores práticas seguidas nesta área, o diagnóstico estrito de transexualismo só é considerado firme após a comprovação durante, pelo menos, dois anos da persistência da perturbação.

Esta é, de resto, a solução adoptada, por exemplo, pela lei que vigora em Espanha, a qual exige, inclusivamente, dois anos de acompanhamento médico para adequar as características físicas às do sexo pretendido.

8 – Nos termos do regime que o Decreto nº 68/XI se propunha estabelecer, as pessoas que detêm perturbação de identidade de género encontram-se desprotegidas relativamente a um eventual erro de diagnóstico ou à própria reponderação da sua decisão de mudança de sexo – a qual, segundo a opinião de especialistas, pode ocorrer nos estádios iniciais da referida perturbação.

9 – Muito problemática é, também, a ausência de critérios para a emissão do relatório clínico. De facto, sendo o requerimento acompanhado unicamente desse relatório e não dispondo o conservador de possibilidade de controlo substancial do mesmo, impunha-se que a lei fosse muito exigente quanto às condições para a sua emissão.

Ora, nos termos do regime aprovado, o relatório é elaborado por “equipa multidisciplinar de sexologia clínica em estabelecimento de saúde público ou privado, nacional ou estrangeiro”.

Admite-se, pois, que profissionais sem a necessária especialização ou qualquer tipo de preparação para o acompanhamento de casos desta natureza, em regra muito complexos, possam constituir uma equipa multidisciplinar – cuja composição o decreto em apreço não especifica – e emitam certificados que serão, obrigatoriamente, seguidos pelo conservador para o efeito da mudança de sexo e nome no registo. Com efeito, a sexologia clínica não corresponde a uma especialidade médica reconhecida em Portugal e o decreto é igualmente omisso quanto à qualificação profissional específica do psicólogo que integre a referida equipa.

Ainda mais grave, o mesmo relatório pode ser emitido em estabelecimento de saúde, público ou privado, estrangeiro, por clínicos cujas habilitações não são reconhecidas ou sequer controladas pelas autoridades portuguesas – ao contrário do que sucede, por exemplo, nas leis em vigor em Espanha ou no Reino Unido. Assim, não existe qualquer possibilidade de sujeitar esses profissionais ao cumprimento mínimo de regras éticas e deontológicas, com claro prejuízo para o interesse público e para os direitos e interesses daqueles que pretendem efectuar a mudança de sexo.

10 – Não são, ainda, negligenciáveis os efeitos negativos deste regime na ordem jurídica, designadamente na confiança que inquestionavelmente deve estar associada ao sistema público de registo.

Na verdade, o registo tem por objectivo dar publicidade a determinados factos. Por esta razão, o regime do Decreto nº 68/XI prevê a alteração do averbado no registo civil de modo a tornar o género registado conforme com a aparência demonstrada pela pessoa.

Ora, pelas razões mencionadas, a completa ausência de densidade normativa (v.g., na definição do conceito de perturbação de identidade de género ou dos critérios de diagnóstico) torna o registo, indesejavelmente, fonte de insegurança e de incerteza jurídicas. Permitir a mudança de sexo em casos não comprovados ou cujo diagnóstico se revele insuficiente será muito prejudicial para a confiança pública no sistema registal.

11 – Assim, o regime a aprovar nesta matéria não deve, de modo algum, pelas suas deficiências técnico-jurídicas e pela sua ausência de clareza e densidade, contribuir para agravar a situação de quem possui perturbação de identidade de género, uma situação que, importa afirmá-lo, se reveste frequentemente de contornos dramáticos do ponto de vista da auto-realização individual e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

12 – Por último, numa matéria deste melindre e complexidade, em que existe um grande desconhecimento do que verdadeiramente está em causa – na essência, uma perturbação de índole clínica –, importa que a comunidade compreenda o sentido e o alcance das intervenções do legislador, as quais devem primar pelo seu apuro técnico-jurídico e por uma real preocupação de salvaguarda dos interesses e direitos das pessoas.

Ora, tal não ocorre, manifestamente, com o Decreto nº 68/XI, razão pela qual entendi devolvê-lo, sem promulgação, à Assembleia da República, de modo a que esta matéria seja objecto de uma análise mais aprofundada por parte dos Senhores Deputados, com vista a uma adequada ponderação dos interesses que comprovadamente se mostrem merecedores de tutela pelo Direito.
 

Com elevada consideração,

Palácio de Belém, 6 de Janeiro de 2011

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Aníbal Cavaco Silva

 

06.01.2011

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