O Presidente da República promulgou hoje a lei da exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez, tendo enviado à Assembleia da República uma mensagem em que identifica um conjunto de matérias que deve merecer especial atenção por parte dos titulares do poder legislativo e regulamentar, de modo a assegurar um equilíbrio razoável entre os diversos interesses em presença.
É o seguinte o teor da mensagem enviada pelo Presidente da República à Assembleia da República:
Nos termos do artigo 134º, alínea b), da Constituição, decidi promulgar como Lei o Decreto nº 112/X, da Assembleia da República, que regulou a exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez.
No uso da faculdade prevista na alínea d) do artigo 133º da Constituição, entendi fazer acompanhar o acto de promulgação de uma mensagem à Assembleia da República.
1. Como é do conhecimento público, o Decreto nº 112/X foi aprovado na sequência do referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez que se realizou no dia 11 de Fevereiro de 2007, o qual não logrou obter a participação de votantes necessária para que o mesmo se revestisse, nos termos do artigo 115º, nº 11, da Constituição, de carácter juridicamente vinculativo.
2. Não se encontrando a Assembleia da República juridicamente vinculada aos resultados do citado referendo, entendeu todavia o legislador, no uso de uma competência que a Constituição lhe atribui, fazer aprovar o Decreto que agora me foi submetido a promulgação.
3. Para esse efeito, terá por certo concorrido a circunstância, a que o Presidente da República não pode ser indiferente, de naquele referendo ter sido apurada uma percentagem de 59,25 % de votos favoráveis à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, nas condições e nos termos expressos na pergunta submetida à consulta popular e cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional, através do seu Acórdão nº 617/2006, deu por verificada.
4. De igual modo, não pode o Presidente da República ser indiferente à circunstância de o Decreto nº 112/X ter sido aprovado por uma larga maioria parlamentar.
5. Considero, todavia, que existe um conjunto de matérias que deve merecer especial atenção por parte dos titulares do poder legislativo e regulamentar, de modo a que, da concretização da legislação ora aprovada e de outras leis a emitir no futuro, se assegure um equilíbrio razoável entre os diversos interesses em presença.
6. Assim, prevendo a Lei que a «informação relevante para a formação da decisão livre, consciente e responsável» da mulher grávida, a que se refere a alínea b) do nº 4 do artigo 142º do Código Penal, seja definida através de portaria – opção que se afigura questionável, dada a extrema sensibilidade da matéria em causa – importa, desde logo, que a mulher seja informada, nomeadamente sobre o nível de desenvolvimento do embrião, mostrando-se-lhe a respectiva ecografia, sobre os métodos utilizados para a interrupção da gravidez e sobre as possíveis consequências desta para a sua saúde física e psíquica.
A existência de um «período de reflexão» só faz sentido, em meu entender, se, antes ou durante esse período, a mulher grávida tiver acesso ao máximo de informação sobre um acto cujas consequências serão sempre irreversíveis. E a decisão só será inteiramente livre e esclarecida se tiver por base toda a informação disponível sobre a matéria.
Por outro lado, afigura-se extremamente importante que o médico, que terá de ajuizar sobre a capacidade de a mulher emitir consentimento informado, a possa questionar sobre o motivo pelo qual decidiu interromper a gravidez, sem que daí resulte um qualquer constrangimento da sua liberdade de decisão.
Parece ser também razoável que o progenitor masculino possa estar presente na consulta obrigatória e no acompanhamento psicológico e social durante o período de reflexão, se assim o desejar e a mulher não se opuser, sem prejuízo de a decisão final pertencer exclusivamente à mulher.
É ainda aconselhável que à mulher seja dado conhecimento sobre a possibilidade de encaminhamento da criança para adopção, no âmbito da informação disponibilizada acerca dos apoios que o Estado pode dar à prossecução da gravidez, nos termos da alínea b) do nº 2 do artigo 2º da presente Lei.
A transmissão desta informação deve revestir-se de um conteúdo efectivo e concreto, não podendo cingir-se a uma mera formalidade, antes tendo de incluir todos e quaisquer elementos que esclareçam a mulher sobre a existência de procedimentos, medidas e locais de apoio do Estado à prossecução da gravidez e à maternidade.
A disponibilização da informação acima referida constitui algo que não só não contende com a liberdade de decisão da mulher, como representa, pelo contrário, um elemento extremamente importante, ou até mesmo essencial, para que essa decisão seja formada, seja em que sentido for, nas condições mais adequadas – quer para a preservação do seu bem-estar psicológico no futuro, quer para um correcto juízo de ponderação quanto aos interesses conflituantes em presença, quer, enfim, quanto às irreparáveis consequências do acto em si mesmo considerado.
7. Tendo em conta que o acompanhamento psicológico e social, durante o período de reflexão que precede a interrupção da gravidez, pode ser prestado não apenas em estabelecimentos oficiais mas também em estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos (v.g., clínicas privadas especialmente dedicadas a esse fim), importa que o Estado assegure uma adequada fiscalização, designadamente através da implementação de um sistema de controlo da qualidade profissional e deontológica e, bem assim, da isenção daqueles que procedem a tal acompanhamento.
Na verdade, podendo não existir separação entre o estabelecimento onde é realizado o acompanhamento psicológico e social e aquele em que se efectua a interrupção da gravidez e tendo a Lei procurado garantir a imparcialidade e a isenção dos profissionais de saúde – determinando-se, nomeadamente, que o médico que realize a interrupção não seja o mesmo que certifica a verificação das circunstâncias que a tornam não punível –, considero que salvaguardas do mesmo teor devem ser asseguradas no que respeita ao acompanhamento psicológico e social, especialmente quando a interrupção da gravidez é realizada numa clínica privada.
Além disso, o Estado não pode demitir-se da função de criar uma rede pública de acompanhamento psicológico e social, para as mulheres que o pretendam, ou de apoiar a acção realizada neste domínio por entidades privadas sem fins lucrativos.
8. Para além do plano regulamentar, a exclusão dos profissionais de saúde que invoquem a objecção de consciência, prevista no nº 2 do artigo 6º, parece assentar num pressuposto, de todo em todo indemonstrado e ademais eventualmente lesivo da dignidade profissional dos médicos, de que aqueles tenderão a extravasar os limites impostos por lei e, além de informarem a mulher, irão procurar condicioná-la ou mesmo pressioná-la no sentido de esta optar pela prossecução da gravidez.
Não parece que a invocação da objecção de consciência à prática da interrupção da gravidez constitua, em si mesma, motivo para a desqualificação dos médicos para a prática de um acto de outra natureza – a realização de uma consulta com um conteúdo clínico informativo.
Esta exclusão é tanto mais inexplicável quanto, em situações onde podem existir legítimos motivos para suspeitar da imparcialidade e da isenção dos prestadores da informação, o legislador nada previu, nem evidenciou idênticas preocupações quanto à salvaguarda da autonomia das mulheres.
9. Além disso, é legítimo colocar a dúvida sobre se a invocação do direito à objecção de consciência pelos médicos e outros profissionais de saúde tem de ser feita obrigatória e exclusivamente de modo geral e abstracto – o que parece desproporcionado – ou se poderá ser realizada também selectivamente, de acordo com circunstâncias específicas transmitidas pela mulher, nomeadamente o recurso reiterado à interrupção da gravidez, a existência de pressão de outrem para a decisão tomada ou mesmo o sexo do embrião, cada vez mais precocemente determinável.
10. Considero que devem ser delimitadas de forma rigorosa as situações de urgência em que a interrupção da gravidez pode ter lugar sem a obtenção do consentimento escrito da mulher e sem observância do período de reflexão mínimo de três dias, nos termos do nº 6 do artigo 142º do Código Penal. Esta questão ganha agora uma acuidade acrescida com a despenalização da interrupção da gravidez, por opção da mulher, até às dez semanas.
11. Sendo a interrupção da gravidez um mal social a prevenir, como foi amplamente reconhecido por todas as forças que participaram na campanha do referendo, será anómalo que o legislador não tome providências que visem restringir ou disciplinar a publicidade comercial da oferta de serviços de interrupção da gravidez.
Assim, à semelhança do que fez em relação a outros males sociais, devem proscrever-se, nomeadamente, formas de publicidade que favoreçam a prática generalizada e sistemática da interrupção voluntária da gravidez, em detrimento de métodos de planeamento familiar cujo acesso o Estado está obrigado a promover e que, nos termos da presente Lei, se encontra vinculado a transmitir à mulher.
12. Justamente no quadro do planeamento familiar, tem igualmente o Estado a obrigação, agora ainda mais vincada, de levar a cabo uma adequada política de promoção de uma sexualidade responsável e de apoio à natalidade.
13. Registei o progresso efectuado no sentido de aproximar o conteúdo do diploma das soluções contidas na generalidade das legislações europeias nesta matéria, através da proposta de alteração apresentada no Plenário da Assembleia da República no dia 8 de Março, que determinou a obrigatoriedade de a mulher que se proponha interromper a gravidez ser informada sobre «as condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade».
14. Considero ainda que, se o processo legislativo em causa tivesse beneficiado de um maior amadurecimento e ponderação, talvez daí resultassem, como seria desejável, um consenso político mais alargado e soluções mais claras em domínios que se afiguram de extrema relevância, alguns dos quais atrás se deixaram identificados, a título exemplificativo.
Após a sua entrada em vigor, caberá então verificar se, na prática, esta Lei contribui efectivamente para uma diminuição não só do aborto clandestino como também do aborto em geral, o que implica uma avaliação dos resultados do presente diploma, a realizar pelo legislador num prazo razoável.
15. De todo o modo, no Decreto nº 112/X, aprovado por uma ampla maioria, encontram-se reunidas, no essencial, as condições para que se dê cumprimento aos resultados da consulta popular realizada no dia 11 de Fevereiro de 2007 e à pergunta então submetida a referendo.
Além disso, os aperfeiçoamentos introduzidos no decurso do debate parlamentar constituem, na medida em que se tenham em consideração as observações atrás formuladas, um passo para conciliar a liberdade da mulher e a protecção da vida humana intra-uterina, valor de que o Estado português não pode, de modo algum, alhear-se.
Lisboa, 10 de Abril de 2007
© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016
Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.
Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.