Como anunciei na Mensagem de Ano Novo que dirigi aos Portugueses no passado mês de janeiro, a Presidência da República decidiu assinalar os 40 anos do 25 de abril promovendo uma Conferência Internacional sobre a democracia portuguesa, a cultura de compromisso e os desafios do desenvolvimento.
Considerei ser oportuno que, ao celebrarmos quatro décadas de regime democrático, fosse realizado um encontro de reflexão e de debate entre personalidades nacionais e estrangeiras. Nesta Conferência, que simbolicamente se inicia no Dia da Europa, reúnem-se académicos de excelência e outras individualidades que, pelas funções que exerceram ou exercem, aliam à profundidade do conhecimento o seu saber de experiência feito.
Agradeço a presença de todos, na certeza de que nesta Conferência ouviremos
Intervenções informadas e esclarecidas, e, acima de tudo, opiniões livres e independentes sobre algumas das questões fundamentais com que Portugal se confronta nos nossos dias.
Entre essas questões, destaco o aprofundamento da cidadania democrática, a cultura de compromisso e, bem assim, a importância do conhecimento, da inovação e da competitividade para o desenvolvimento sustentável do nosso País.
Agradeço ao Professor João Lobo Antunes, comissário das conferências «Roteiros do Futuro», o empenho que tem colocado na realização destes encontros.
Agradeço igualmente ao Professor David Justino o intenso trabalho levado a cabo na preparação destas conferências.
Quero agradecer também, de forma muito calorosa, à Dra. Leonor Beleza que, na qualidade de Presidente da Fundação Champalimaud, é, hoje, e uma vez mais, a anfitriã destes encontros.
Saúdo todos os palestrantes, que acederam ao convite para participar nesta conferência «Portugal – Rotas de abril».
Ao Senhor General António Ramalho Eanes dirijo uma saudação muito especial pela sua presença e pelo testemunho que connosco irá partilhar. Os Portugueses e a História têm uma enorme dívida de gratidão para com o General Ramalho Eanes: à lucidez da sua coragem e ao seu espírito de liderança ficámos a dever o 25 de novembro de 1975, o momento decisivo da consolidação do processo democrático. Primeiro Presidente eleito da história da democracia portuguesa, exerceu os seus mandatos de uma forma exemplar, reconhecida pela sua isenção, pelo seu rigor ético e pela sua fidelidade à Constituição da República.
Senhoras e Senhores,
Os três temas deste encontro – democracia, compromisso e desenvolvimento – remetem-nos para uma única realidade e convocam as aspirações e os ideais mais profundos do 25 de abril.
A democracia, na verdade, pressupõe uma cultura de compromisso. Através de um contrato social e político, os cidadãos rejeitam a violência e o autoritarismo como forma de ação e de governo. Em nome da paz e da liberdade, adotam a democracia como princípio de convivência e como modo de escolha dos governantes através da realização de eleições livres. Esse compromisso não põe termo ao pluralismo ou à liberdade nem afeta a alternância política. Pelo contrário, a alternância e a expressão da diversidade de opiniões só são possíveis num regime democrático. A democracia é produto de um compromisso e também, ao mesmo tempo, o elemento que permite que os consensos fundamentais não apaguem as diferenças entre as várias forças políticas, as diversas ideologias ou correntes de opinião.
No entanto, a democracia não possui apenas um caráter instrumental, sendo muito mais do que um método de seleção pacífica de representantes do povo. A democracia deve afirmar-se substantivamente como cultura cívica e projetar-se em todas as esferas da sociedade. Para que tal aconteça, é necessário que existam regras que definam e salvaguardem a substância do pluralismo e da liberdade. Essas regras têm um nome: Constituição. Aqui emerge, uma vez mais, a importância da cultura de compromisso. A Constituição não implica que todos se revejam nas suas soluções políticas e normativas, mas exige um compromisso sempre renovado em torno das opções fundamentais de uma República de cidadãos livres.
O terceiro tema desta Conferência é o desenvolvimento. Também ele se funda numa cultura de compromisso democrático. Será possível que, em situações transitórias e localizadas no tempo, regimes ditatoriais consigam alcançar taxas elevadas de crescimento económico. No entanto, o crescimento económico não se confunde com o desenvolvimento humano. A economia está ao serviço das pessoas, não as pessoas ao serviço da economia. Assim, o desenvolvimento integral dos seres humanos como pessoas pressupõe e exige uma qualidade essencial, a qualidade de cidadão. Ora, só somos cidadãos num regime livre e democrático.
Não por acaso, as instituições internacionais têm adotado como critério o índice de desenvolvimento humano, que não se circunscreve aos níveis de rendimento, mas abrange um conjunto de outras variáveis, situadas não só no plano material mas também no imaterial, como a qualidade de vida e o bem-estar em sentido amplo.
Assim, mesmo que seja possível associar o crescimento económico a alguns regimes não-democráticos, trata-se de uma situação transitória e ilusória. A prazo, no tempo longo, o crescimento cria legítimas aspirações de liberdade e de bem-estar social. Só a democracia pode assegurar o desenvolvimento autêntico e sustentado, porque apoiado num amplo compromisso social e político.
Senhoras e Senhores,
A História da Europa e de Portugal confirma a importância da cultura de compromisso na sedimentação da democracia e do desenvolvimento.
A História lida com o tempo e, neste contexto, devemos ter a perceção de que existe uma diferença substancial entre o tempo curto e o tempo longo. O tempo curto situa-se no quadro dos ciclos económicos, políticos e eleitorais. O tempo longo remete para opções estratégicas que ultrapassam o prazo limitado de uma legislatura ou dos mandatos dos governantes.
Observada sob a perspetiva do tempo curto, a História da Europa caracterizou-se pela sucessão de diversos governos e pela natural alternância de programas e de ideologias. Mas, olhada sob o prisma do tempo longo, vemos que a Europa só conseguiu alcançar um período de paz e de bem-estar sem precedentes na sua História porque existiu um compromisso firme em torno de uma constelação de valores políticos – a liberdade, a democracia, a justiça social – e em torno de um projeto de redistribuição da riqueza sujeito à salvaguarda da dignidade da pessoa humana.
O Estado Social europeu é um património de que não podemos abdicar e que só pôde nascer devido à existência de um compromisso entre forças políticas de quadrantes diversos, de entendimentos entre governos e oposições, entre agentes sociais e económicos que souberam compreender a essência e a exigência do tempo longo.
Também em Portugal, a democracia só pôde afirmar-se, na sequência do 25 de abril, porque existiu um compromisso histórico entre o poder militar e o poder civil. Mantendo a sua diversidade ideológica e as suas diferentes estratégias políticas, as forças partidárias alcançaram um entendimento com o Movimento das Forças Armadas que permitiu a realização de eleições livres e democráticas. Os militares, por um lado, e os partidos políticos, por outro, demonstraram uma exemplar capacidade de olharem para o tempo longo do superior interesse nacional. A lógica do conflito poderia ter chegado ao extremo de uma guerra civil, mas prevaleceu o espírito de compromisso nacional que permitiu a aprovação da Constituição da República Portuguesa.
A longevidade da Constituição, por sua vez, só foi possível, de novo, porque os agentes políticos souberam ter a perceção do tempo longo – e compreenderam a necessidade de adaptar o texto da Lei Fundamental às exigências próprias de diversos ciclos históricos: em 1982, o poder civil afirmou a plenitude da sua legitimidade democrática; em 1989, adotámos o modelo económico do espaço em que nos havíamos integrado, as Comunidades Europeias.
A adesão às Comunidades Europeias e, mais tarde, a fundação da União Europeia e a criação da moeda única não foram um processo fácil e, uma vez mais, exigiram a compreensão do tempo longo que é própria da cultura de compromisso. Na altura, as principais forças políticas e as suas lideranças foram capazes de colocar de lado as divergências do tempo curto e compreenderam o alcance deste desígnio estratégico. A pertença à União Europeia trouxe benefícios indiscutíveis para os Portugueses, mas também exigências de responsabilidade e rigor que só podem ser satisfeitas através de entendimentos de amplo alcance.
Nos dias que vivemos, é natural que os cidadãos, confrontados pelas adversidades do quotidiano, sejam absorvidos pelas exigências imediatas do tempo curto. No entanto, temos de compreender, em definitivo, que existem na sociedade portuguesa desafios que só poderão ser vencidos numa perspetiva temporal alargada e no quadro de uma cultura de compromisso.
Todos os Portugueses, a começar pelos agentes políticos, devem perceber que a cultura de compromisso, típica dos países mais desenvolvidos da Europa, é essencial para a sustentabilidade do modelo social que permitiu progressos extraordinários em domínios como a educação e a saúde, a qualidade de vida das populações e a proteção social dos cidadãos que, devido a várias circunstâncias, como a velhice, o desemprego ou a doença, se encontram particularmente vulneráveis.
Se estes desafios se colocam a todas as democracias da Europa, elas adquirem mais acuidade em países como Portugal.
Enfrentamos um sério problema demográfico que põe em risco a sustentabilidade do pacto geracional em que assenta a nossa democracia, a nossa coesão e o nosso modelo de justiça social.
Por outro lado, o sistema eleitoral proporcional, tendo a grande virtude de dar voz mais ativa à diversidade de correntes e ao pluralismo de opiniões, dificulta que a estabilidade e a governabilidade sejam conseguidas apenas através do sufrágio. Por outras palavras, torna mais imperiosa a necessidade de uma cultura cívica de compromisso.
Enfrentamos, de igual modo, necessidades particulares no que respeita à sustentabilidade da dívida pública e à criação de emprego. Assim, é imprescindível assegurar um crescimento económico estável, com um forte investimento no setor da produção de bens e serviços que concorrem com a produção externa.
Para o efeito, há um conjunto de reformas no Estado e de orientações políticas estratégicas que devem ser objeto de um entendimento de médio prazo entre as forças partidárias. Sem esse compromisso, mantendo-se a prevalência das oscilações erráticas do tempo curto sobre a perspetiva nacional do tempo longo, Portugal muito dificilmente será capaz de assegurar uma trajetória sustentável de desenvolvimento.
Senhoras e Senhores,
Foram estas, no essencial, as razões que me motivaram a promover esta Conferência. Estou certo de que, no final do Encontro, estaremos mais esclarecidos sobre as necessidades, mas também sobre as dificuldades, de uma cultura de compromisso que assegure a estabilidade da democracia e a sustentabilidade do desenvolvimento.
Agradeço a vossa presença, com a firme convicção de que hoje, nesta sala, estamos a ir ao encontro das aspirações e das esperanças daqueles que, há 40 anos, fizeram e festejaram a alegria do 25 de abril.
Muito obrigado.
© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016
Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.
Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.