“Um outro Tempo. Um outro Olhar”
Quando fui visitar a história da Universidade Católica Portuguesa para nela integrar a minha história com a Universidade Católica Portuguesa, verifiquei, com um certo espanto, que tinha chegado lá mais no princípio da vida da universidade do que pensava.
O reconhecimento oficial da Universidade Católica Portuguesa pelo Estado é de 1971, ano em que parti para Inglaterra com a família para a Universidade de York.
Regressámos em 1974, dez dias antes da Revolução, e, três anos depois de várias circunstâncias felizes que não comandei, iniciava o meu encontro com a Universidade que ainda hoje consideramos, o meu marido e eu, que faz parte das nossas vidas. É a nossa casa. Talvez ainda mais minha do que dele, porque, devido às ondas do mar da vida, acabei por estar cá durante mais tempo.
Por exemplo, durante os dez anos em que ele foi Primeiro Ministro, eu estive sempre cá. Como calculam, durante esses dez anos ele só vinha quando era convidado… e podia aceitar o convite.
Estive cá com os reitores Prof. Bacelar, D. José Policarpo, Prof. Isidro Alves, Prof. Braga da Cruz.
Meu Deus, estive cá com todos! Será que isto faz de mim uma relíquia?
Faz pelo menos que eu seja alguém que pode partilhar convosco memórias de um tempo em que aconteciam coisas que nem vos passam pela cabeça.
Como calculam, nos anos subsequentes ao 25 de Abril os tempos não eram fáceis.
Também não o são agora, eu sei, mas havia nessa época talvez um pouco mais de exotismo.
Um mundo sem computadores nas mãos dos professores nem dos alunos. Sem telemóveis, sem internet. Imaginam esses tempos de barbárie?!!!
Façam um esforço.
Quando cá cheguei para dar Língua e Cultura Portuguesa do então chamado Ano Propedêutico aos cursos de Filosofia e Teologia, havia apenas este edifício onde agora nos encontramos, mas muito menos elaborado nos seus interiores.
À volta campos vazios, sem prédios nem estradas. Dava aulas no 3º andar e era sem espanto que assistíamos, como se estivéssemos na aldeia, a sementeiras, a searas a ondular e à ceifa, lá por alturas dos exames finais. Em dias de sorte passavam rebanhos com pastores e cão de guarda.
Eu vinha de autocarro da Avenida Infante Santo (ainda hoje moro no mesmo sítio) e descia no Hospital de Santa Maria. Fazia o caminho a pé até à Universidade e parecia-me deixar para trás a cidade e entrar num mundo rural de ciclos sazonais de vida, que me encantava.
Quando entrava na porta da Universidade – a mesma porta que atravessei hoje – abria-se um mundo de saber, ainda muito íntimo e familiar.
Recém chegada de uma Universidade inglesa, eu encontrava em Portugal, com surpresa e agrado, o mundo que deixara para trás e não sabia que existia no meu país. Uma Universidade fora de portas com uma calma, uma paz e um silêncio de um campus britânico.
Avisei que isto eram memórias de uma história tão antiga que os tempos até pareciam bárbaros. Talvez não imaginassem que eram tão antigos, por eu estar viva, e não tão decrépita assim, na vossa frente…
À época havia muita agitação no meio universitário e a Universidade Católica aparecia como um oásis onde continuava a haver aulas normais, em paz e sossego, com professores empenhados em ensinar e alunos empenhados em aprender.
Éramos poucos e o ambiente, além de calmo e pacífico, era muito caseiro.
Na altura, quem me orientava pelos meandros da casa era um franciscano austero e simpático a quem chamava familiarmente de Padre Montes. O Padre Montes sabia onde estava tudo, onde eram as aulas e as salas. Era ele o dono, chamemos-lhe assim, do curso de Filosofia.
Sabia até onde estava o giz e o pano do pó com que limpávamos a secretária e a cadeira se, por acaso, nos quiséssemos sentar sem ficarmos com a roupa branca de giz.
Não havia auxiliares de limpeza e os professores faziam, de boa vontade, o que fosse preciso para que as aulas funcionassem bem. E funcionavam muito bem, mesmo sem computadores.
O Padre Montes, que é uma memória amiga desses tempos na Católica, é D. António Montes Moreira, Bispo de Bragança, que vai ser substituído no dia 2 de Outubro por D. José Cordeiro, o Bispo mais jovem de Portugal (44 anos) que tirou o curso de Teologia e Filosofia no Porto. Se o tivesse tirado aqui, teria sido meu aluno.
Outro colega que recordo com saudade (deixou-nos em 2010) é o Prof. Costa Freitas, uma figura muito presente no Curso de Filosofia e um grande Mestre para muitas gerações de filósofos desta casa. Fazíamos os exames orais juntos e aprendi muito com a sua sabedoria.
Isto são alguns apontamentos breves dos meus primeiros anos nesta casa que considero minha e que vai ser também vossa nos próximos anos, num tempo muito diferente daquele que recordo agora.
Mas atrás de tempo, tempo vem e, se fiquei aqui até 2008, claro que assisti a muitas alterações, não só físicas mas também de funcionamento.
A Universidade foi crescendo em sabedoria e em edifícios, enquanto à sua volta o espaço ia encolhendo de tal maneira que hoje não resta memória dessa largueza de horizontes rurais que encontrei quando aqui cheguei nos anos setenta do século passado.
No princípio dos anos oitenta fui convidada para dar também as aulas de Língua e Cultura Portuguesa aos alunos do Ano Propedêutico do Curso de Direito, que à época estava integrado na Faculdade de Ciências Humanas.
Nessa altura as aulas eram separadas – Filosofia e Teologia de manhã, na ala esquerda do edifício, e Direito à tarde, na ala direita do edifício – o que fez com que a minha vida na Universidade passasse, com grande alegria minha, a ser muito mais intensa.
Além de mais aulas, tinha também muitos mais alunos, com interesses, vidas e pontos de vista muito diferentes.
Fazia adaptações das obras que íamos estudando às turmas que tinha na frente, e foi um tempo de grande enriquecimento humano para mim. Espero que também para os alunos. Esta é uma esperança permanente dos professores e acho que quem perde esta esperança deve deixar de ensinar.
Eram os tempos áureos do curso de Direito na Universidade Católica.
Depois do 25 de Abril de 74, a Faculdade de Direito tinha sido das mais atingidas pela loucura subsequente à revolução e os pais dos filhos que queriam mesmo estudar e tirar o Curso sabiam que aqui tinham essa garantia.
Continuávamos a ter óptimos professores, empenhados em trabalhar mesmo e essa fama, e realidade, fez o “boom” do curso nesses anos ainda agitados nas Universidades do Estado.
Havia exames de aptidão e os candidatos atingiam cerca de sete centenas para vagas que pouco passavam de cento e cinquenta.
Nesse tempo fazia e corrigia os testes de Português, que era uma das cadeiras exigidas no exame de entrada.
Com a adaptação às novas realidades do ensino, o passo seguinte foi a junção, no Ano Propedêutico, dos cursos de Filosofia, Teologia e Direito nas mesmas aulas teóricas, o que foi mais um avanço no interesse e dinamismo dos nossos encontros, porque os diferentes pontos de vista já se podiam confrontar directamente.
Sempre fiz questão que, mesmo nas aulas teóricas, pudesse dar espaço às opiniões dos alunos. Em Língua e Cultura Portuguesa não via o Professor aquele tempo todo – aulas de duas horas – a falar sozinho. E, apesar de sermos muitos, sempre conseguíamos trocar pontos de vista ordeiramente e com proveito para todos.
Nos anos noventa, a Universidade decidiu que não tinha condições para continuar com o curso preparatório de entrada e o Ano Propedêutico acabou. Foi nessa altura que fui convidada para outra actividade, ainda ligada à língua portuguesa, mas muito diferente. Estava a ser lançado o Programa Erasmus e desafiaram-me a dar aulas aos alunos, agora todos estrangeiros.
Foi uma nova etapa no meu enriquecimento pessoal.
Digamos que esta história de um encontro que durou anos, com bom aproveitamento dos dois lados, foi muito de se medir por FIB.
O que é isto do FIB?
Sabem daquele país que decidiu introduzir a medida da felicidade do seu povo (Felicidade Interna Bruta)? O país é o minúsculo Butão, lá para o lado dos Himalaias. Nos anos setenta, um jovem rei de 18 anos teve a ideia de que afinal a riqueza pode não ser tudo na vida. Porque não medir também a felicidade dos povos?
Parece-me uma boa ideia, principalmente em tempos como os que vivemos hoje, em que temos que mudar de vida e pensar mais no que somos do que no que temos. Mas afinal o Butão não é um grande exemplo, porque o Rei, (que já não é o mesmo) é muito rico e o povo nem por isso... Bem prega Frei Tomás!
Mas o que quero dizer-vos é que o meu FIB na Universidade Católica Portuguesa foi altíssimo.
Trabalhei cerca de três décadas nesta casa, sem olhar muito para a folha de pagamentos. E fui muito feliz.
Quando passei para o ensino de português para estrangeiros, no programa Erasmus, foi como se tivesse começado a viajar de graça dentro das paredes da sala de aula.
Tive que mudar de agulha para o ensino de português e cultura portuguesa para estrangeiros e foi com muito prazer e proveito que o fiz.
Jovens vindos de tantos países, da Europa primeiro, e do mundo, mais tarde, abriram-me novos horizontes de oportunidades para ensinar de maneira diferente a alunos que, inevitavelmente, iam aprender de maneira diferente.
Visitávamos museus e palácios, fazíamos festas nas aulas com música e comida dos vários países presentes, levava-os a minha casa para lancharem comigo e saberem como era uma casa normal de uma família portuguesa normal.
Era uma festa. Mas, atenção, aprendiam mesmo a falar e escrever português, cada um de acordo com as suas possibilidades. Um italiano provavelmente mais do que um russo ou um polaco.
Mas havia uma certa imprevisibilidade no aproveitamento, dependendo das motivações pessoais de cada um. Tive um aluno islandês que arranjou uma namorada alentejana. Passava férias com ela na aldeia do Alentejo e tínhamos conversas muito interessantes, comparando a vida na Islândia à vida na aldeia alentejana. Havia na aula várias opiniões sobre a capacidade de adaptação do homem, que é muita, principalmente quando se é muito jovem, a circunstâncias tão diversas.
Não sei como terminou a história de amor, mas o islandês teve óptimo aproveitamento em Português...
Em 2006 houve uma alteração na minha vida – em 9 de Março o meu marido tomou posse como Presidente da República – que teve influência na minha relação com esta casa.
Levei até ao fim o curso Erasmus que tinha em mãos (nunca me passou pela cabeça desistir a meio do ano lectivo), mas durante esses meses percebi que era difícil, mesmo impossível, conciliar a vida de professora com a de mulher do Presidente, que tem muitas solicitações. Ou fazia uma coisa ou outra. Tentar as duas deixaria pontas soltas nos dois lados, o que não ia com a minha maneira de ser.
Mais uma vez, a Universidade Católica e eu provámos ter uma relação sólida.
Propuseram-me vir, até à reforma, dar aulas/conferência sobre temas da nossa literatura, à minha escolha.
Aceitei logo e, com enorme gosto, voltei à minha casa de sempre com um tema que me era e é muito caro: Casas de Letras.
Nessa série, escolhi abordar a temática da importância da casa em três dos nossos grandes autores.
Assim regressei ao convívio, que tanto prazer me dá, com uma assembleia estudantil, e não só, que estava disposta a ouvir-me divagar sobre a relação de Sophia de Mello Breyner Andresen com o mar – A Minha Casa é o Mar – de Agustina Bessa-Luís com a paisagem exterior e interior do Douro – A Casa da Sibila – e a paixão de Cesário Verde pela cidade – A Minha Casa é Lisboa.
Tenho de confessar-vos que estas três incursões posteriores às aulas diárias já foram feitas com o auxílio de suporte informático. Novos tempos, novas tecnologias.
Essas conferências e o facto de estar de novo aqui hoje mostram que a Universidade Católica Portuguesa sabe que pode contar comigo e tenho sempre gosto em responder às suas chamadas.
As minhas memórias não têm nada a ver com as vossas memórias, quando as quiserem partilhar daqui a uns anos.
Os tempos são outros, a universidade é outra, o mundo é outro. Mas desejo-vos que, quando daqui a muitos anos alguém vos perguntar coisas sobre a vossa passagem pela Universidade Católica Portuguesa, possam dizer como eu vos digo hoje:
- Há muitas histórias que posso contar sobre a universidade onde estudei. Mas, talvez o mais importante que posso dizer é que, com momentos bons e maus, como em todo o lado, é ainda hoje uma casa de que guardo memórias muito felizes.