No dia 31 de Julho, quando o país estava de férias ou a partir para férias, fez uma comunicação ao país rodeada por algum dramatismo e que suscitou muita especulação. Porque tomou essa iniciativa inédita no seu mandato?
Porque não podia, em consciência, deixar de falar ao país sobre algumas normas do Estatuto dos Açores, pois elas punham em causa o equilíbrio de poderes entre os órgãos de soberania, equilíbrio que é um dos pilares do nosso sistema político. Algumas normas impunham restrições ao exercício dos poderes por parte do Presidente da República que não constam da Constituição. Mas mais importante ainda do que as normas era o precedente que se criava. Para mim, a palavra-chave da comunicação é mesmo essa: precedente. Ou seja, permitir-se, por lei ordinária, introduzir limites ao exercício de competências de um órgão de soberania. Penso que nunca, na nossa democracia, se procurou, por lei ordinária, limitar as competências do Presidente, pelo que não exerceria bem o meu mandato se ficasse calado. Aceitar o precedente seria aceitar que no futuro este fosse invocado para impor outras restrições ao exercício dos poderes do Presidente da República.
Tratando-se de um precedente, e tendo ele a ver com os poderes constitucionais do PR, porque não colocou também à consideração do Tribunal Constitucional os pontos que referiu na sua mensagem?
Entendi que se tratava de uma discordância de natureza político-institucional que devia assumir por inteiro, dando a cara, e não através de terceiros. A minha discordância era tão forte que tinha de ser eu a assumi-la.
Mas então porque não enviou antes uma mensagem à Assembleia, como na altura muitos comentadores sugeriram?
Porque não o podia fazer no quadro da tramitação a que estão sujeitas as leis vindas da Assembleia para promulgação. Como o Tribunal Constitucional considerou inconstitucionais algumas das normas do Estatuto, o Presidente está obrigado por lei a vetar o diploma e a enviar uma mensagem à AR, como enviei, dizendo que o fazia por motivos de inconstitucionalidade. Na mesma mensagem o Presidente não pode acrescentar as suas reservas políticas. A minha alternativa era esperar que a lei fosse expurgada das inconstitucionalidades pela Assembleia, lá para o fim de Setembro, altura em que então poderia exercer o meu direito de veto político. Para evitar atrasos e por dever de transparência relativamente à Assembleia, entendi que, no momento em que devolvia o estatuto, tinha a obrigação de revelar as minhas discordâncias políticas para que os deputados, se o assim o entenderem, possam, ao mesmo tempo, corrigir as inconstitucionalidades e considerar, ou não, as minhas observações e dúvidas.
O Presidente, convém recordar, só pode fazer dois tipos de mensagens sobre leis vindas da Assembleia para promulgação: aquela em que explica as razões de um eventual veto político e aquela em que, promulgando a lei, comunica à Assembleia que há pontos em que discorda das opções tomadas. O Presidente não pode enviar mensagens à Assembleia da República em que enuncia as condições em que pode promulgar uma lei em vez de a vetar. Por isso, para revelar as minhas objecções políticas, só me restava a fórmula de uma mensagem ao país e que, por essa via, passaria a ser do conhecimento dos dirigentes políticos e dos deputados.
Mesmo assim, regresso a uma questão anterior: porque não recorreu ao Tribunal Constitucional, já que, se este visse inconstitucionalidades nos mesmos pontos, a Assembleia só poderia insistir neles reunindo uma maioria de dois terços, ao passo que pode ultrapassar o seu eventual veto político apenas com uma maioria simples?
Posso sempre pedir a fiscalização sucessiva do diploma. Mas insisto que se trata de uma questão político-institucional. O que é que pensariam os meus sucessores se eu não me tivesse oposto à criação deste precedente? Se ele for criado, será que no futuro não poderá ser invocado para voltar a limitar este ou aquele poder do Presidente da República?
Ao falar no dia 31 de Julho, criou uma expectativa que muitos consideraram desproporcionada...
Não tinha outro dia em que pudesse falar. O Tribunal Constitucional anunciou a sua decisão a 29 de Julho, à tarde; no dia 30 estudei o acórdão; no dia 31 elaborei a mensagem em que devolvi o diploma à Assembleia por razões de inconstitucionalidade. Ora era nesse mesmo dia que devia revelar as minhas outras objecções ao estatuto. Não tinha escolha, pois enviei o estatuto para o TC a 4 de Julho, logo após recebê-lo da Assembleia, e o tribunal utilizou os 25 dias que a lei estabelece para cada apreciação. Não podia ter actuado mais depressa. Outra questão é verificar que o estatuto esteve na Assembleia mais de seis meses...
Na mensagem refere que, em devido tempo, alertou vários dirigentes políticos para a questão. Viu-se que sem sucesso. Também alertou dirigentes dos partidos da oposição, que acabariam por ajudar a aprovar o diploma por unanimidade?
O diálogo entre o Presidente e o Governo sobre diplomas do Governo é relativamente fácil, mas não existe diálogo entre o Presidente e os partidos parlamentares sobre as leis em debate na Assembleia. O que pode existir são conversas mais ou menos informais com dirigentes políticos sobre esses diplomas. Essas conversas tive-as com dirigentes políticos da maioria e da oposição, por mais de uma vez e ao longo do período de seis meses em que o estatuto esteve na AR. E todos aqueles com quem falei chamando a atenção para a gravidade de certas normas que afectavam o equilíbrio de poderes manifestaram uma grande compreensão e deram-me a entender que alterariam o diploma. Convenci-me, porque as conversas foram sempre no mesmo sentido, que os problemas seriam resolvidos antes do dia da votação. Não foi isso que aconteceu.
E não aconteceu porque há eleições regionais em Outubro nos Açores?
Tenho dificuldade em perceber por que é que as minhas reservas não foram acolhidas face às conversas que ocorreram. Talvez os que estiveram na comissão em que se debateu na especialidade possam explicar o que se passou. Não quero especular, mas não me admiraria que a proximidade das eleições possa ter tido alguma influência.
Não receia que o seu gesto se transforme em tema de campanha nos Açores?
Fui muito cuidadoso na linguagem, porventura até tornando a mensagem difícil de entender por muitos portugueses, mas tinha de ter o cuidado de utilizar uma linguagem jurídica, pois, caso venha a ter de vetar politicamente o diploma depois de ser corrigido das inconstitucionalidades, terei de utilizar uma linguagem semelhante. Este foi o tempo em que o estatuto me chegou às mãos para promulgação. Se a questão for tratada com seriedade, não deve ser tema de campanha.
Não foi exagerada a expectativa criada no dia 31? Não podia ter revelado logo qual o tema da mensagem?
Nunca imaginei que iriam surgir tantas especulações. Por duas razões: a primeira é que, quando enviei o diploma para o TC, referi no comunicado que publiquei que tinha sérias reservas político-institucionais sobre outras normas para além daquelas sobre as quais pedia a fiscalização da constitucionalidade, dando a entender que em momento oportuno as revelaria; a segunda é que, durante as conversas informais que fui tendo com mais de meia dúzia de dirigentes políticos ao longo dos meses, disse-lhes que considerava o precedente tão grave que não deixaria de fazer uma comunicação ao país se o projecto fosse para diante tal como estava. Tendo eu sido tão claro e transparente, achei que os políticos e os analistas facilmente descortinariam o tema da comunicação. Até porque presumo que a minha posição não era só do conhecimento de políticos do continente. Enganei-me em relação à especulação que se gerou, mas pelo menos uma coisa consegui: os agentes políticos que já estavam na praia prestaram alguma atenção à minha comunicação. A posteriori, talvez tenha cometido um erro, mas nunca previ, pelas razões citadas, que não se deduzisse facilmente qual o tema que iria abordar. Estava no comunicado, tinha sido dito a mais de meia dúzia de dirigentes políticos...
Ao falar de um precedente também está a referir-se ao que poderia vir, a seguir, da Madeira?
O presidente do Governo Regional da Madeira declarou que estava a seguir atentamente o comportamento da AR em relação ao Estatuto dos Açores, mas para mim o importante é que não estabeleço qualquer distinção entre as regiões dos Açores e da Madeira. Se estivesse em causa o Estatuto da Madeira, a minha posição seria exactamente a mesma. Agora o que considero totalmente absurdo e ilegítimo foram as insinuações que alguns fizeram de que se tratava de um ataque à autonomia regional. Já dei provas, ao longo da minha vida política, de que respeito e defendo as autonomias, que considero um dos sucessos da nossa democracia. E é preciso que se diga que as normas que me suscitam as maiores reservas em nada afectam a autonomia, ao contrário do que foi insinuado. O que está essencialmente em causa é o poder do Presidente para dissolver a Assembleia Regional dos Açores. A Constituição prevê que sejam ouvidos os partidos e o Conselho de Estado, o estatuto acrescentava a Assembleia Regional, o presidente do Governo Regional e os grupos e representações parlamentares regionais. Podia dar-se o caso de ter de consultar três vezes o presidente do Governo Regional: como membro do Conselho de Estado, na delegação do seu partido e ainda como titular desse cargo. Nem em caso de dissolução da Assembleia da República isso é exigido. Um Presidente só dissolve uma Assembleia Regional em situações muito excepcionais.
Ora, o que não aceito é a utilização da autonomia regional como arma de arremesso político ou como instrumento de demagogia. Ou como razão para desrespeitar a Constituição, que eu jurei cumprir e fazer cumprir, criando um precedente que põe em causa o equilíbrio de poderes que a caracteriza. Mais: esta alteração no Estatuto dos Açores resulta da revisão constitucional de 2004, em que se consagrou um conjunto de avanços nas autonomias regionais. A questão que então se pode colocar é por que motivo é que a revisão do estatuto só foi feita em 2008, próximo do acto eleitoral? Porque não foi feita em 2005, ou 2006, ou 2007? Não sei, apenas constato que foi escolhida a proximidade das eleições.
Mas agora a palavra pertence de novo aos deputados. Tenho manifestado sempre um grande respeito pela Assembleia da República, mas não posso deixar de defender aquilo que, em consciência, considero ser da maior importância e de cumprir o juramento que fiz de defender a Constituição.
Quando falou, muitos portugueses partiam de férias preocupados com a situação económica. Eles talvez estivessem à espera de uma palavra sua e terão ficado desiludidos com uma mensagem que, como referiu, tem um conteúdo jurídico que nem todos compreenderão. Esta sua decisão não pode diminuir o alcance de futuras comunicações ao país?
Penso que, fora das ocasiões em que tradicionalmente se dirigem ao país - pelo 25 de Abril, pelo 10 de Junho, pelo 5 de Outubro e na mensagem de Ano Novo -, nenhum Presidente, nos últimos vinte e tal anos, falou ao país sobre a gravidade da situação económica. Quando fizeram alguma comunicação ao país, penso que foi sempre sobre questões políticas e institucionais relevantes. Se tivesse feito agora uma comunicação sobre a situação económica do país, estaria a cometer um erro político, um erro de alguma gravidade. Não estaria a ajudar o país a vencer as suas dificuldades.
Não houve nenhuma relação causal entre as várias decisões de promulgação ou veto que teve de tomar durante este Verão (e foram muitas)?
Não. Este é um assunto muito específico e com uma importância particular, único no seu alcance político-institucional.
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