Fui desafiado a estar presente nesta homenagem ao Dr. Miguel Veiga. Tratando-se de Miguel Veiga, percebem que use a palavra desafio.
De facto, sabendo que me seria pedido que proferisse algumas palavras sobre o homenageado, interroguei-me: que me seria possível dizer que não fosse previsivelmente referido por aqueles que o conhecem mais de perto, que com ele têm convivido, que melhor lhe podem louvar as qualidades ou atrever-se a desvelar algum defeito?
Mas aceitei, como aliás prova a minha presença aqui. Devo-o ao respeito que tenho pelo Dr. Miguel Veiga. Vou tentar ser justo para com o homenageado.
Como se pode ser justo perante uma figura humana como a do Dr. Miguel Veiga?
A identidade de cada homem forja-se num cadinho onde diversos condimentos se misturam harmoniosamente: a terra, a família, a cultura, a profissão, os valores e motivações fundamentais de uma vida, os amigos, a busca da verdade sobre si próprio.
Perante nós temos um homem do Porto, de origem familiar beirã e francesa, de cultura clássica mas desprovido de deuses, causídico ilustre, homem firme e convicto, pródigo em amizades duradouras, amante da vida boa e do saber. São muitas as dimensões que nos oferece a personalidade do Dr. Miguel Veiga!
Poderemos encontrar um fio condutor que dê um sentido à sua vida? Todas as vidas têm um fio e no Dr. Miguel Veiga encontro o sorriso que ele sempre soube dar-lhe.
Com o nosso homenageado de hoje, aprendemos que aquele que sabe sorrir para a vida tem uma recompensa: a vida também lhe sorri.
Este cosmopolita do Porto, seduzido pelo fogo sagrado da cultura e das artes, soube conciliar a dimensão ética e a dimensão estética, cumprindo, assim, o ideal de vida proposto pelos clássicos que tanto admira e cultiva.
Tem sido um seguidor incansável do culto dos amigos, como gosta de sublinhar: “A amizade é o lugar da terra onde mais gosto de viver”. Bem-aventurados aqueles que sabem o valor da amizade por terem amigos verdadeiros.
Podemos mesmo afirmar que a sua biografia é um belo romance de amor pela vida. Uma vida que é um romance: eis uma esplêndida imagem para nos referirmos a alguém que adora dedicadamente os livros e que - a expressão é sua - traz sempre um poema no bolso.
Para este amante dos poetas, o exercício da palavra dita é uma primeira natureza. E é também um instrumento profissional para quem vive a advocacia como um humanismo e como uma magistratura cívica. Em suma, como um exercício de liberdade. Pois não é a lide judicial a sua paixão, a única, junto com a da liberdade, a que sempre foi fiel? – as palavras são de novo suas.
Na advocacia pôde exercitar o dom da palavra. O exercício da sua liberdade conduziu-o à vida política e partidária. Também aí, não é o Dr. Miguel Veiga conhecido pelos seus silêncios. Ouvi-lo é sentir a pulsão de intervir e a obrigação de tomar a palavra. Ouvi-lo é, também, sentir a inteireza de carácter e a coragem cívica.
As suas palavras, quantas vezes aceradas – também aconteceu o Prof. Cavaco Silva ser alvo delas -, são genuínas. São palavras que revelam nele o destemor e a ousadia.
Por isso, encontro o seu retrato mais lapidar num singelo artigo de jornal, de há poucos anos, que assim descrevia uma determinada reunião política: “… praticamente não se registaram vozes dissonantes, apenas Miguel Veiga disparou contra …” (DN 02.07.2004)
Eis o seu retrato. Sempre quis dizer a verdade, a sua verdade – mesmo dissonante, mesmo estando isolado. Foi o seu modo de, como Sá Carneiro, de quem foi amigo verdadeiro, seguir na exaltante demanda de uma terra prometida portuguesa, mais livre, mais fraterna e mais solidária.
Foi, sobretudo, o seu modo de buscar para si mesmo uma vida coerente e inteira, fecunda e verdadeira.
Em Portugal diz-se que preferimos homenagear os mortos. Há pelo menos uma boa razão para isso: é que os mortos já não vão ter oportunidade para nos desapontarem.
Quando homenageamos aqueles que estão entre nós poderemos sentir que eles ainda terão a possibilidade de fazer o contrário do que neles elogiamos. Com o Dr. Miguel Veiga não corremos esse risco.
Ouçamos palavras suas: “O tempo conta muito e não conta nada. Os homens dizem que o tempo passa, o tempo diz que os homens passam”.
É bem verdade, meu caro Dr. Miguel Veiga.
Mas há homens que não passam: são aqueles que dão o exemplo. Estou seguro de que continuaremos a ouvir o ecoar desta voz que reclama Justiça e Liberdade. Afinal, ouvi-la-emos uma vez mais já de seguida, em mais um magnífico exercício oratório a que, todos o sabemos, só faltará… a capacidade de síntese.
Recentemente, o Dr. Miguel Veiga afirmou: “Sou como os gatos, gosto que me façam festas”. Gosta que lhe façam festas, com efeito. A festa que hoje lhe é dedicada, à qual tenho muito gosto em me associar, não deixará, por certo, de agradar ao carácter felino do eterno combatente que homenageamos.
© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016
Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.
Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.