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INTERVENÇÕES

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Discurso do Presidente da República na Conferência Internacional Organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian “Que valores para este tempo?”
Lisboa, 25 de Outubro de 2006

Senhor Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian
Senhor Professor Eduardo Lourenço

É com todo o gosto que me associo a esta Conferência Internacional que coloca uma questão essencial: “Que valores para este tempo?”

Os tempos são realmente propícios para iniciativas como esta. Fala-se, com frequência, de uma crise geral de sentido que ofenderia os sistemas de valores sobre os quais as nossas sociedades foram erigidas.

De épocas assim disse Oliveira Martins:

“... a um sistema sucede outro sistema e, nos intervalos das doutrinas sucessivamente dominantes, há sempre pausas de materialismo obscuro.”

Viveremos numa dessas pausas? Mas, se assim for, sabemos que é justamente no tempo do materialismo obscuro que mais se exige dos homens para conferir novos sentidos aos valores de sempre e, mesmo, para vislumbrar novos valores.

Infelizmente já não está entre nós o inspirador desta Conferência, o Professor Fernando Gil, mas continua vivo o exemplo que nos legou. O exemplo de um homem de convicções que, prisioneiro de uma extrema lucidez, dedicou a sua vida a uma incessante busca das condições da verdade possível.

Fernando Gil identificou uma tarefa, nas suas palavras, desesperadamente urgente: descobrir os valores deste tempo. Não pretendo, nesta singela intervenção, sugerir qualquer resposta para tão magna questão. Essa é tarefa que está atribuída à reflexão conjunta que aqui terá lugar, hoje e amanhã.

Mas permitam-me que diga algumas palavras sobre uma outra questão: por que precisamos de valores?

Os homens aspiram a um ideal ou, pelo menos, anseiam por ter um ideal que possam seguir. De facto, sem um ideal de vida em comum e sem os valores que o realizam, não haveria laços que ligassem os homens no tempo. Um grupo sem valores comuns não seria uma sociedade, porque nele faltaria o sentido, a esperança, o futuro. Aí só haveria a força, para manter os homens juntos. E a força, concordarão comigo, não funda o laço social.

Os valores são, pois, a expressão de um acordo sobre o modo de realizar objectivos comuns. Não falo das abstracções elaboradas, e longamente trabalhadas, pela reflexão filosófica. Falo dos valores que unem os homens que vivem em comum. Falo de valorações concretas –sobre a boa convivência, sobre o bem comum, sobre o trabalho, sobre a entreajuda e a cooperação, sobre as práticas culturais e os usos tradicionais -, valorações que representam a existência de uma sociedade perante os outros grupos e perante a História.

Estes valores da vida em comum pacificam a eterna tensão entre a necessidade de vivermos juntos e a vontade de cada um de viver à sua maneira.

Ora, não parece possível sustentar valores no modelo do homem solitário, porque os valores surgem, precisamente, quando se partilham valorações concretas. Esse é o meio pelo qual se confrontam os objectivos de cada um com os objectivos do todo e, consequentemente, pelo qual se resolve a tensão entre o indivíduo e o colectivo. Assim se criam condições para que os homens cooperem, ou seja, para que façam obra comum.

Em suma, o homem, para não ser solitário, tem de ser solidário.

Pela minha parte, constato que os homens cooperam. É certo que se fala em fim das certezas, em negação das tradições, em descrença nos ideais. O diagnóstico é por vezes pesado, angustiante.

No entanto, para além de todas as lucubrações teóricas, na vida concreta continuam a desenvolver-se entre os homens relações cooperativas.

Essas relações cooperativas são baseadas quer na reciprocidade, quer no altruísmo. O que significa, desde logo, que as escolhas humanas não podem ser sempre explicadas em termos de benefícios individuais e egoístas. Os homens também são movidos por outras racionalidades, baseadas na amizade, na compaixão, no respeito ou simplesmente na vontade de fazer obra comum.

Como Presidente da República Portuguesa, como português, desejaria que esse espírito de cooperação, que essa vontade de fazer obra comum, dominassem mais profundamente os meus compatriotas. Na medida das minhas possibilidades, gostaria de contribuir para que assim sucedesse. Acredito, aliás, que há motivos para ter esperança. É a minha convicção, uma convicção fundada em boas razões.

Sinto-o sempre que encontro portugueses disponíveis para realizar actos de voluntariado. Sensibiliza-me, em particular, ver entre eles tantos jovens, aqueles que supostamente estariam possuídos pela descrença nos ideais.

Sinto essas razões quando aprecio o esforço daqueles portugueses que, graciosamente, impulsionam inúmeras colectividades da nossa sociedade civil.

Sinto razões para ter esperança quando deparo com portugueses que, apesar das seduções que lhes chegam de outras paragens, escolhem ficar entre nós e aqui dar o seu contributo ao país, por exemplo, nas áreas científicas mais avançadas.

Sinto ainda boas razões para acreditar no espírito cooperativo dos portugueses quando encontro empresas que assumem a sua responsabilidade social.

Sinto esperança em todos os actos de cooperação voluntária e em todas as vontades que se unem para fazer obra comum.

Minhas Senhoras
Meus Senhores,

Sabemos que os valores, porque são uma criação colectiva podem ser determinados por actos meditados e deliberados. Debates como os que se sucederão aqui nos próximos dias serão valiosos pela capacidade de oferecer referências e consegui-lo-ão se tocarem o senso comum. Assim se cumprirá a máxima “pensar melhor para viver melhor”.

Viver de acordo com os valores que escolhemos pode ser uma via difícil, mas a única coerente. Nas nossas sociedades, nas quais a questão dos valores está sempre em aberto, a sua escolha é um exercício de liberdade. Mas é um exercício de liberdade com responsabilidade.

De facto, somos livres porque estamos predispostos a mudar as nossas convicções se a isso formos convencidos. Mas também temos consciência de que só a nossa predisposição para mudar dá valor ao facto de mantermos as nossas convicções.

Somos livres também porque somos responsáveis e porque sabemos que seremos responsabilizados pelas escolhas que fizermos e pela maneira como as soubermos interpretar em toda a nossa vida. Somos, afinal, responsáveis perante todos os outros.

Trata-se, sem dúvida, de uma difícil liberdade.

Trata-se da responsabilidade no seu sentido mais profundo, como mediação entre a minha liberdade e o valor dos outros. Em cada homem que sabe viver assim a sua responsabilidade eu encontro uma nova razão para ter esperança.

Termino felicitando a Fundação Calouste Gulbenkian, na pessoa do seu Presidente, pela organização desta Conferência e a todos os participantes formulo votos de trabalho frutuoso. Não escondo minha curiosidade em conhecer a vossa resposta à questão: ”Que valores para este tempo?”

© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016

Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.

Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.