Senhor Presidente do Parlamento Europeu,
Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra,
Senhor Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
Senhor Dr. Jacinto Lucas Pires,
Senhora Dra. Maria Teresa Almeida Garrett e restantes filhos, Rafael, Martinho e Simão,
Senhores Deputados,
Prezados amigos e colegas do Doutor Francisco Lucas Pires,
Senhoras e Senhores,
Conheci bem o Doutor Francisco Lucas Pires. Com ele privei. E dele guardo a memória de um homem a quem foi concedido pouco tempo, demasiado pouco para tudo aquilo que tinha para dar.
Diz-nos a intemporal sabedoria grega que aqueles que partem cedo são amados pelos deuses. Estou certo de que concordarão comigo se vos disser que este português cosmopolita, que jamais esqueceu a sua Coimbra – a Lusa Atenas a que regressava, simbolicamente dir-se-ia, quando perdeu a vida - foi, sem dúvida, amado pelos deuses do Olimpo.
Sabemos que Francisco Lucas Pires viveu intensamente e que, em todas as dimensões da sua vida e, sobretudo, como homem de família, académico e político, fruiu na plenitude o seu tempo.
Recordo que em Francisco Lucas Pires havia muito que nos cativava: a sua inteligência superior, a vastidão da sua cultura humanista, a sua simpatia transbordante, o seu riso espontâneo.
Quando revejo a sua imagem sorridente, não posso deixar de pensar que há uma virtude purificadora no riso. Aqueles que têm um profundo sentido de humor e possuem, por natureza, um génio pacífico, detêm, como ninguém, a chave do pensar lúcido e inteligente.
Lucas Pires foi um homem político que soube, como poucos, usar a palavra para influenciar aqueles que o ouviam. Ele conhecia bem o poder do discurso. Disse-nos mesmo que “só por dentro de uma língua vamos directamente ao coração das coisas e das pessoas”.
Dominava essa capacidade única de, para cada ideia, encontrar a melhor palavra e de, assim munido, alcançar a consciência dos seus ouvintes para aí, onde já não há barreiras à sedução, convencer.
Tamanho poder sobre os homens seria, em muitos casos, perigoso. Não em Francisco Lucas Pires.
O verbo era-lhe fácil, mas nunca fútil, e estava sempre ao serviço das suas convicções e do seu pensamento generoso, sem concessões ao populismo oportunista ou à retórica vazia.
Por vezes, é certo, também o colocava ao serviço das suas paixões, como a paixão pelo seu Benfica. Chegou ao ponto de dizer, decerto exagerando, ao menos no que lhe respeitava, que “só os golos nos tornam fluentes”.
Na elegância do seu discurso transparecia sempre o sentimento e a verdade. Sentia-se nele uma sinceridade efusiva, algo de que hoje tanto temos falta.
Homem de convicções seguras, soube ser-lhes fiel. Escolheu a autenticidade de quem crê, mas não se encerra na sua crença. Por isso, sempre tolerante, fundou a sua compreensão pelos outros na “fortaleza das próprias convicções”, segundo a sua própria expressão.
Por tudo isto, continuamos a ser, dez anos depois, convocados para um encontro com a palavra de Francisco Lucas Pires. Sobretudo, com a palavra que ele dedicou à Europa.
Cada homem tem o dever de abraçar os desafios que a história do seu tempo lhe impõe. Podendo fazê-lo de dois modos: ou com a razão fria ou com a paixão arrebatadora. Francisco Lucas Pires fê-lo, singularmente, com a razão e com a paixão.
Apaixonou-se pela ideia europeia. Mas também teve a lucidez de, tal como os pais fundadores da Europa, ser um visionário que soube combinar sabiamente utopia e pragmatismo, afinal o mote que inspirou a integração europeia.
Abraçou, desde o primeiro momento, uma convicção: a de que o sentido maior de Portugal é ser europeu e de que fazemos parte por inteiro do devir colectivo da Europa.
Fiel a essa convicção, Francisco Lucas Pires teve, ainda antes da adesão e, depois, como deputado e vice-presidente do Parlamento Europeu, uma acção permanente e apaixonada na defesa do nosso futuro comunitário e dos interesses do nosso País na Europa. Portugal deve-lhe muito pelo talento, pela clarividência e pela lucidez com que travou esse combate.
A sua intervenção política foi sempre reflectida, porque assentava numa vontade intensa mas nem por isso menos prática de alterar profundamente as condições reais da vida política portuguesa.
O seu pragmatismo obrigou-o, na primeira hora, cerca de dez anos antes da adesão, a alertar os portugueses para o esforço árduo e prolongado que era necessário realizar e sem o qual nos arriscávamos, como disse então, a “vestir o casaco de peles da Europa sem ter sequer roupa interior”.
Por entre a roupagem tantas vezes burocrática da Europa real, Francisco Lucas Pires sempre soube vislumbrar um ideal de liberdade, de tolerância e de abertura. Sonhou, verdadeiramente, uma nova Europa.
Mais do que como uma associação de Estados com intuitos económicos, compreendeu a Europa como a realização de um projecto genuinamente humanista. Recordo uma frase sua que ilumina o pensamento europeu de Francisco Lucas Pires: “A politização e a democratização da União só podem, de resto, impelir a uma consolidação dos direitos e suas garantias, produzindo uma comunidade mais de povos, grupos e indivíduos e não quase exclusivamente de Estados”.
Visionário, como poucos, para Lucas Pires o século XXI só seria europeu se a União fosse um modelo de unidade aberta e solidária e se o pluralismo fosse a sua essência estrutural. Uma unidade a construir democraticamente e em paz. Para usar as suas próprias palavras uma “unidade política e democrática, com base no cidadão”.
Foi, também, um grande pedagogo da ideia europeia.
Procurou, incessantemente, traduzir num discurso acessível e sedutor a imagem dessa Europa, a Europa, afinal, que lhe fazia ter esperança num destino colectivo comum.
Nunca esqueceu, em qualquer caso, as suas raízes. Terá sido um português europeu ou foi, antes, um europeu português?
Foi, acima de tudo, um português e um europeu de corpo e alma, sempre convicto, sempre genuíno, sempre entusiasta.
Um português que vincou a importância da cultura portuguesa – que entendia como “uma certa ideia comum sobre o que somos”, ou seja, aquilo “que diz respeito à própria permanência do país”.
A cultura, disse-o no momento em que apresentava a sua visão como Ministro, é justamente o domínio em que “Portugal continua a ser mais vasto do que a sua geografia” porque, afinal, “somos o país europeu que mais cedo se fez ao largo”, e fomos nós que “carregámos uma cultura comum através do mundo”.
A cultura europeia, justamente. Aí, nessa singularidade que, do mesmo passo, nos faz europeus, podemos, disse-nos Francisco Lucas Pires, encontrar o sentido da nossa permanência.
Foi nesse projecto duradouro de um Portugal europeu que Francisco Lucas Pires encontrou a razão de ser da sua acção política porque o nosso viver comum democrático exige, de novo por palavras que nos legou, “que o futuro valha sempre mais do que o passado”.
A vida de Francisco Lucas Pires é, sem dúvida, uma vida plena de ensinamentos. Por isso, aqueles que o recordam com saudade têm o dever de dar um sentido existencial à rememoração.
Eis o sentido que procuramos e que Lucas Pires encontrou, seguindo a ordem inspiradora de um poeta maior:
“Põe quanto és no mínimo que fazes.” (Fernando Pessoa)
Aprendemos, assim, pelo exemplo, que temos o dever de, a cada momento, encurtar a distância entre aquilo que sabemos que devemos ser e aquilo que, não obstante, somos.
Temos, em suma, o dever de sermos dignos de nós próprios e daqueles que nos amam e nos admiram. Como Francisco Lucas Pires o foi. Brilhantemente.
© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016
Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.
Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.