É para mim um motivo de grande regozijo estar aqui hoje, dia em que a Fundação Calouste Gulbenkian comemora o seu quinquagésimo aniversário.
Nesse dia 18 de Julho de 1956 cumpria-se a vontade do fundador, de deixar parte da sua fortuna e a sua extraordinária colecção de arte ao país que o acolheu em 1942 e onde encontrou uma hospitalidade que, nas suas palavras, “nunca havia sentido em mais lado nenhum”.
A estátua da autoria do escultor Leopoldo de Almeida, que se ergue no jardim, retrata bem a imagem desse homem extraordinário que foi Calouste Gulbenkian. Um falcão, enorme, representando o deus Hórus, que simbolizava a realeza e que harmonizava o lado solar e o lado lunar, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos e, sob essa imagem de poder e determinação, a figura do homem, que só na aparência é menor.
De facto, a estátua que perpetua Calouste Gulbenkian exala vitalidade, força e confiança, vincada pela expressão do seu olhar. É a imagem de um homem que enfrenta as tormentas e incertezas do mundo, disposto a deixar nele uma marca nítida, que foi a de um empreendedor de sucesso que não ignorou a importância da função social da riqueza.
A família Gulbenkian é oriunda de Cesareia, na Capadócia, cidade onde se destacou S. Basílio, grande apóstolo do ideal da partilha. Terá sido essa cultura de dádiva que influenciou esta família de mecenas das artes e das obras de beneficência, tradição seguida ao longo de gerações e que está na génese da Fundação Gulbenkian e dos seus objectivos estatutários.
Mas a Fundação só pôde nascer após ter sido travada, e vencida, uma das grandes batalhas jurídicas da época e não seria decerto o que é, se não tivesse tido, como seu primeiro presidente, essa figura ímpar de determinação e talento que foi o Dr. José de Azeredo Perdigão.
Pelo papel que desempenhou na sua instalação, pela obra que nela desenvolveu e pelo prestígio que lhe granjeou, o nome de Azeredo Perdigão ficará para sempre ligado à história da Fundação. Foi o seu impulso decisivo que edificou uma instituição independente, apenas submetida aos estatutos e à lei, que não cede às contingências do tempo porque sabe pensar e agir no longo prazo. Honra a sua natureza de entidade privada que prossegue uma missão de interesse público.
Os estatutos, definindo a missão da Fundação em quatro áreas - a beneficência, a arte, a educação e a ciência - deixaram às sucessivas administrações a liberdade e a responsabilidade para decidir sobre o melhor modo de a concretizar. O nosso país precisa de instituições assim. Autónomas, fortes, verdadeiros exemplos de excelência que devem ser seguidos.
Eis o legado do Dr. Azeredo Perdigão. É justo, pois, evocar de modo muito especial a sua memória neste dia.
Quero igualmente prestar a minha homenagem aos ilustres sucessores no cargo, Prof. António Ferrer Correia e Dr. Victor de Sá Machado cuja actividade à frente da Fundação, nomeadamente na cooperação com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, todos recordamos com admiração.
Uma palavra muito especial ao actual presidente, Dr. Emílio Rui Vilar, a quem tenho o prazer de saudar vivamente neste dia.
As múltiplas realizações que ao longo destes anos a Fundação levou a cabo são testemunho inequívoco da clarividência e dedicação de quem a conduziu até aqui.
Os seus responsáveis e todos quantos aqui trabalham estão de parabéns. O legado do seu fundador é de há muito uma instituição altamente respeitada.
Num tempo conturbado como foi este meio século, em que o mundo conheceu várias crises e Portugal viveu uma revolução, a solidez financeira da Gulbenkian, a sua estabilidade e a consistência do rumo seguido até hoje constituem o elogio mais eloquente aos homens que a ergueram e consolidaram.
Portugal tem boas razões para se congratular com estes 50 anos de existência da Gulbenkian. Faço votos para que ela prossiga, por muitos mais anos ainda, o trabalho meritório que tem vindo a desenvolver em prol da sociedade, da cultura, da ciência, da educação e da arte.
Ligam-me a esta Fundação laços muito especiais. Iniciei aqui a minha actividade profissional, como investigador no Centro de Economia e Finanças, do Instituto Gulbenkian de Ciência, ao qual estive associado durante dez anos. Foi na Gulbenkian que efectuei os meus primeiros trabalhos académicos e foi ela que apoiou o meu doutoramento em Inglaterra. Estou, por isso, em condições privilegiadas para testemunhar pessoalmente sobre o modo como desenvolveu a actividade da formação de recursos humanos e como tem sido importante para os portugueses.
A escolha de Portugal para erigir a Fundação foi um gesto que nos distinguiu, enquanto povo que sabe receber e que ao longo da sua história se cruzou com outros povos e outras culturas.
Mas foi, ao mesmo tempo, uma manifestação de confiança na nossa capacidade para gerir e pôr ao serviço da humanidade um tão valioso património material e espiritual. Outros poderiam ter duvidado dessa capacidade. Calouste Gulbenkian acreditou e hoje sabemos que teve razão.
Da Fundação se dizia, até há não muito tempo, que era o nosso «Ministério da Cultura», tal o prestígio de que gozava e ainda goza neste sector.
Sem dúvida, a cultura tem sido o aspecto mais visível da sua actividade.
Nas artes, para além dos museus e das bibliotecas, avulta a promoção de espectáculos, exposições, conferências, edição de livros e atribuição de bolsas e subsídios.
Nos seus museus e auditórios, o público passou a poder usufruir, com regularidade, das melhores produções artísticas, sejam elas nacionais ou estrangeiras, antigas ou contemporâneas.
Mais recentemente, foi ainda essa mesma estratégia que permitiu o restauro de vários monumentos do património histórico que os portugueses construíram pelos quatros cantos do mundo.
No vasto domínio de acção nos campos da educação e cultura, não posso deixar de destacar o sulco profundo que o serviço de bibliotecas itinerantes deixou na memória dos portugueses.
Quando era ainda incipiente o sistema de bibliotecas públicas, sobretudo escolares, as carrinhas cinzentas eram ansiosamente esperadas por miúdos e graúdos, que se deslumbravam com as prateleiras forradas de livros a que podiam aceder, ganhando contacto com um mundo que de outro modo lhes estaria vedado, abrindo horizontes e cultivando o gosto pela aprendizagem.
Poucas acções terão tocado tão profundamente como esta o interior de Portugal na segunda metade do século XX.
Dizia então o Dr. Azeredo Perdigão que “não basta aprender a ler e a escrever. É preciso ler sempre e regularmente”. Neste simples e profundo enunciado afirmava o combate à exclusão e abria um caminho que ainda hoje prosseguimos com tenacidade e redobrado reconhecimento da sua importância.
Mas a actividade da Fundação Calouste Gulbenkian em Portugal está longe de se esgotar na sua vertente cultural.
Quer na promoção da investigação científica quer na divulgação da ciência, a Fundação foi pioneira na vitalização de um sector essencial à nossa vida colectiva e despertou o País para um mundo novo.
Além das bolsas atribuídas a milhares de investigadores, em Portugal e no estrangeiro, criou centros de investigação e desenvolveu programas específicos de investigação biomédica avançada, em que participam especialistas de todo o mundo.
Neste domínio, o Instituto Gulbenkian de Ciência é uma referência internacional.
Uma parte importante da comunidade científica portuguesa teve, em algum momento da sua carreira, o apoio desta Fundação.
Na educação, na ciência, na saúde, mas também nas áreas sociais e do desenvolvimento humano, são inúmeros os programas e as acções pioneiras que representam o espírito inovador, visão de futuro e capacidade de prospecção das áreas de intervenção mais apropriadas.
No domínio social, a integração dos imigrantes é hoje uma preocupação comum a todos os países de acolhimento. A Fundação Gulbenkian lançou há vários anos um programa de reinserção sócio-profissional de médicos oriundos do Leste europeu a trabalhar em Portugal, integrando uma acção de solidariedade com o problema da falta de clínicos em alguns dos nossos hospitais.
Mas há ainda uma outra virtude a assinalar. A virtude de saber reconhecer o valor e premiar a excelência. São inúmeros os prémios criados ou patrocinados pela Gulbenkian, cumprindo essa difícil função social que é formar e reconhecer as elites nacionais.
Minhas senhoras e meus senhores
Portugal é hoje um país muito diferente daquele que há 50 anos acolheu o senhor Gulbenkian.
No plano político, somos uma democracia estável, onde a liberdade de expressão intelectual e artística é plenamente respeitada.
No plano social, apesar das assimetrias e das dificuldades existentes, o desenvolvimento levou a todas as regiões as infra-estruturas básicas, os centros de saúde, as escolas e os meios indispensáveis para uma vida minimamente digna.
A integração no espaço europeu rasgou-nos outros horizontes e convoca-nos agora para um futuro de cooperação cada vez mais estreita com a maioria dos estados do continente.
Em todo este processo, que mudou por completo a face do País, a Fundação Gulbenkian esteve sempre presente, antecipando as transformações necessárias, promovendo o debate de ideias e de políticas, estabelecendo pontes com o exterior e constituindo, muitas vezes, um oásis e um polo de modernidade.
Numa cultura em que a dependência do Estado é, desde há séculos, predominante, a Gulbenkian soube afirmar-se pela independência, abrir-se à inovação, evidenciar as potencialidades da livre iniciativa dos cidadãos.
A Fundação Calouste Gulbenkian tem, por tudo isso, um lugar inconfundível na história portuguesa deste último meio século.
Mas ela é, também, um factor integrante da nossa confiança no futuro.
Portugal sente-se honrado por acolher a Fundação Gulbenkian e grato pela imensa obra feita no âmbito da cultura, da ciência e do desenvolvimento humano e social do País, e mantém grandes expectativas em relação à continuação da sua acção.
Ao comemorar o cinquentenário da Fundação Gulbenkian, temos que celebrar também a sua vitalidade, a sua capacidade de se fortalecer e de imprimir o seu cunho de distinção nas múltiplas actividades empreendidas.
O País precisa de instituições sólidas e autónomas, que impulsionem e mobilizem com o seu dinamismo outros sectores da sociedade civil.
Precisa de instituições com experiência e com prestígio além fronteiras, que projectem os portugueses nos circuitos internacionais das empresas, da arte, da ciência e da cultura.
O passado e o presente da Fundação Gulbenkian são a melhor garantia de que ela continuará a ser, como até aqui, uma dessas instituições.
Renovo, pois, as minhas felicitações a todos os seus responsáveis, funcionários, colaboradores e, muito em especial, ao seu Presidente, Dr. Rui Vilar, e aos vogais do Conselho de Administração.
Estou certo de que o espírito e as raízes que animam esta notável instituição e mantêm viva a memória daquele homem que soube dispor dos seus bens a favor dos outros, continuarão a estender a sua acção benéfica e profícua a novas gerações de portugueses.
Estou certo de que esta Fundação continuará a distinguir-se, projectando no futuro o destino de um homem, a sua vontade de partilha e, sobretudo, o seu exemplo.
© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016
Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.
Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.