Ao celebrar cem anos de existência, a República não constitui hoje um «problema» na sociedade portuguesa, nem representa, em si mesma, um «desafio» que tenhamos de enfrentar. A forma republicana de governo encontra-se plenamente consolidada na consciência colectiva, como sedimentada está igualmente a democracia e os princípios a ela associados: o Estado de direito e a salvaguarda dos direitos e garantias dos cidadãos.
Poder-se-á dizer que a República democrática corresponde a um património cívico e cultural do País, em torno do qual existe um grande consenso, transversal às diversas ideologias, correntes doutrinárias e visões do mundo que percorrem a nossa sociedade.
No entanto, há um longo caminho a trilhar em nome de uma maior qualidade da democracia e do aprofundamento do Estado de direito. Uma República plural, feita de cidadãos livres, será sempre um projecto inacabado: a satisfação de expectativas cria novos anseios, legítimas aspirações a que teremos de responder.
Trata-se de uma responsabilidade que recai sobre os agentes políticos, mas também – e principalmente – sobre a sociedade civil. À sociedade civil, não ao Estado, pertence, na verdade, o contributo decisivo para dar resposta aos anseios que ela própria vai gerando. Uma República «completa» e «satisfeita», sem desafios nem problemas, seria um regime destituído de vitalidade e dinamismo. É, pois, extremamente salutar que a República suscite debates, perplexidades, insatisfações: não já sobre a forma republicana de governo, mas sobre o que devemos fazer para a melhorar.
No nosso tempo, os desafios da República dever ser situados à escala global. Daí que seja impensável discutirmos alguns dos principais problemas do presente sem, por um lado, os colocarmos numa perspectiva transnacional e, por outro lado, sem o pensarmos num horizonte de futuro. Entre os múltiplos desafios que se deparam às repúblicas contemporâneas poder-se-ão destacar os seguintes:
1) Sustentabilidade ambiental – o modelo de desenvolvimento que conhecemos ainda se baseia, em larga medida, em formas de produção de bens que criam sérios riscos para os frágeis e delicados equilíbrios em que assenta a Terra e a biodiversidade deste planeta único e irrepetível. Temos feito assinaláveis progressos, mas ainda não encontrámos a fórmula harmoniosa susceptível de, em simultâneo, preservar um ambiente saudável e garantir níveis de desenvolvimento capazes de satisfazer as expectativas materiais dos cidadãos. A resposta a esta questão terá de ser dada à escala planetária, sob pena de se criarem disparidades entre nações e de os Estados ambientalmente mais sadios acabarem por suportar custos de sustentabilidade que devem ser repartidos equitativamente por todos. Seria, no mínimo, paradoxal que aqueles que se mostram dispostos a contribuir mais activamente para a defesa do património comum da Humanidade sejam, afinal, os mais penalizados, desde logo do ponto de vista da sua competitividade económica. Deve existir uma justiça ecológica transnacional.
2) Sustentabilidade energética – apesar de qualificadas como «pós-industriais», as sociedades contemporâneas ainda são altamente tributárias de um modelo de produção herdado do industrialismo, com elevados níveis de consumo energético. Se é fácil afirmar que necessitamos de encontrar fontes alternativas de energia – uma verdade insofismável –, não é menos certo que continuamos a consumir bens produzidos daquela forma «industrialista». Daqui decorre uma clara distorção da competitividade à escala global, o que cria um dilema muito delicado: ou exigimos que todos se situem no mesmo nível de desenvolvimento – e aí, com o aumento do preço dos bens, teremos de alterar os padrões de consumo que nos caracterizam –, ou mantemos uma situação que, a breve trecho, colocará em risco as economias do Ocidente e o modelo social de redistribuição da riqueza que só um elevado crescimento económico permite. Com a agravante de, também nesse caso, termos de mudar profundamente os nossos comportamentos de consumo e estilos de vida. A dependência energética não é apenas uma questão ecológica, mas também geoestratégica. Dela depende a sustentabilidade do planeta, desde logo, mas igualmente a viabilidade do modelo político, económico e social da Europa.
3) Sustentabilidade social entre gerações – o aumento da esperança de vida, por um lado, e as quebras dos níveis de natalidade, por outro, suscitam desafios de grande alcance para a justiça intergeracional. O facto de não existir já uma reposição de gerações faz com que o modelo de sociedade que conhecemos desde o pós-guerra tenha de ser profundamente repensado. A situação actual não é sustentável por muitos anos. São cada vez menos a contribuir para cada vez mais, o que a prazo se torna incomportável. Além disso, os mais novos enfrentam dificuldades, que os seus pais não conheceram, para encontrar empregos estáveis e ingressar na vida activa, constituindo família, realizando-se como pessoas.
No outro extremo da pirâmide etária, os mais idosos são frequentemente objecto de situações de exclusão, de discriminações de que nem sequer nos apercebemos, pois os idosos não possuem um poder reivindicativo e não têm uma capacidade de intervenção na esfera pública semelhante àquela de que beneficiam os outros cidadãos da República. Deve, pois, existir uma maior justiça social entre gerações, de modo a que os mais jovens não sejam lesados nas suas expectativas legítimas, os adultos de meia-idade não tenham de suportar encargos desproporcionados e os idosos não sejam alvo de exclusão ou de discriminação.
Estes são, entre tantos outros, três dos grandes desafios que as repúblicas contemporâneas enfrentam. Em todos eles há um denominador comum: para estes problemas, as soluções só podem ser pensadas à escala global e com uma perspectiva de futuro. De um futuro que se avizinha a passos rápidos e, portanto, que exige o melhor de todos nós.