Quero, antes do mais, agradecer ao Presidente Josep Borrel, o honroso convite que me dirigiu, para participar neste ciclo de conferências sobre o momento actual na União Europeia, que em boa hora o Instituto Universitário Europeu entendeu levar a cabo.
Um convite que me permite prestar homenagem a uma Instituição que tanto tem contribuído para o aprofundamento do ideal europeu e que visitei, pela primeira vez, como Primeiro-Ministro de Portugal, há mais de vinte anos, a convite de Emile Noël, cuja memória evoco aqui, como grande europeísta e grande amigo do meu País.
A União Europeia vive horas decisivas para o seu futuro. O que está em causa é o maior activo de que os povos europeus dispõem para fazer face aos desafios do presente e às incógnitas do futuro: a integração europeia.
É com esta realidade como pano de fundo, que me proponho partilhar convosco algumas reflexões, fruto da minha experiência, da minha formação e das interrogações que o projecto europeu e, em particular, a crise do euro me vêm suscitando.
Desde logo, é um imperativo recordar o admirável sucesso da integração europeia que, em mais de cinco décadas, garantiu um ciclo de paz e prosperidade sem precedentes na História da Europa. Eliminaram-se fronteiras, estabeleceu-se a livre circulação de pessoas, construiu-se um mercado único que é o maior bloco económico do mundo, reforçaram-se os laços de solidariedade com o princípio da coesão económica e social, criou-se a moeda única, definiram-se políticas comuns, promoveu-se a cooperação em múltiplas áreas, projectou-se a Europa no mundo. E, dos seis Estados fundadores, a União Europeia passou aos vinte e sete membros do presente.
Ao longo do caminho, houve que enfrentar várias crises e obstáculos, mas a Europa soube responder. Os interesses nacionais foram enquadrados por um interesse comum que reforça a união e o sentido comunitário. Assim terá de ser, de novo, mais do que nunca, perante a crise actual, indiscutivelmente uma das mais sérias da história da construção europeia.
Importa desfazer algumas apreciações e julgamentos errados que têm emergido a propósito desta crise.
Em primeiro lugar, o euro não é a causa da crise. As causas radicam, por um lado, nas políticas erradas, nomeadamente orçamentais e macroeconómicas, seguidas pelos Estados membros e, por outro lado, numa deficiente supervisão por parte das instituições europeias. A responsabilidade por esta crise é claramente partilhada pelos Estados membros e pelas instituições europeias.
Alguns criticam o Tratado de Maastricht, a cuja assinatura tive a honra de presidir, enquanto Presidente do Conselho Europeu, em 1992. Dizem que as dificuldades actuais vêm das insuficiências do Tratado. Esquecem, desde logo, as circunstâncias: o Tratado da União Europeia foi negociado há vinte anos, a globalização estava ainda a emergir, a UE tinha 12 membros, o muro de Berlim tinha caído há apenas dois anos, os novos actores económicos da era global ainda pouco se afirmavam. O mundo era diferente.
Esquecem também que o Tratado de Maastricht, para além de fixar os mecanismos de supervisão multilateral, não ignorava a necessidade de coordenação das políticas económicas.
É claro que o Tratado traduziu, como sempre acontece neste tipo de negociações, o compromisso possível. Mas foi um grande passo em frente da integração europeia.
É certo, todavia, que já então muitos de nós, com Jacques Delors à cabeça, sabíamos que a União Económica e Monetária, desenhada em Maastricht, apresentava uma construção mais consistente na vertente monetária do que na vertente económica.
Do lado monetário, temos uma arquitectura assente numa lógica federal. Do lado da governação económica, uma arquitectura diferente, muito dependente do sentido de responsabilidade dos Estados na condução e na transparência das suas políticas e da eficácia da supervisão por parte da Comissão e do Conselho de Ministros.
Mas foi a execução do Tratado, e do Pacto de Estabilidade e Crescimento que o veio complementar, que ficou aquém do que se exigia, por irresponsabilidade de governação dos Estados e por ineficácia das instituições europeias. Em particular, houve um factor decisivo para desencadear a crise: o mau escrutínio do rumo das finanças públicas nalguns Estados.
A Comissão e o Conselho não fizeram tudo o que lhes competia para corrigir as situações de défice excessivo. E é bom lembrar a quebra de credibilidade do Pacto de Estabilidade e Crescimento provocada pelo próprio Conselho, ao tudo fazer para que passasse incólume a violação dos limites do défice orçamental por parte da Alemanha e da França, nos primeiros anos deste século.
Foi um mau sinal para os mercados: a União Europeia estava pronta a renunciar ao rigor dos critérios, em favor de considerações e circunstâncias políticas impostas por interesses nacionais. Como alguns de vós se recordarão, houve, até, quem, para justificar o ajustamento das regras do Pacto, lhe tivesse chamado “estúpido”.
Não se atribua, portanto, a culpa da crise da Zona Euro ao Tratado e apenas aos Estados Membros financeiramente indisciplinados.
Importa também reconhecer que a crise envolve a zona euro e não está confinada a um ou outro Estado membro. Na situação actual, e face ao elevado grau de interdependência económica e financeira, qualquer desenvolvimento negativo num Estado da zona euro terá sempre impacto negativo em todos os outros Estados. É este risco de contágio que tem de ser prevenido adequadamente e não pode ser menosprezado.
Perante a evidência da crise, a União tardou a reconhecer a sua natureza e a sua escala e tardou a dar-lhe a resposta que se impunha. Enredada numa retórica política de recriminações mútuas, evitando reconhecer a responsabilidade partilhada, ignorando a evidência dos riscos de contágio, hesitando na solidariedade, oscilando nos instrumentos a usar, promovendo uma deriva intergovernamental, a União Europeia deu guarida a uma crescente especulação sobre a zona euro, alimentando as incertezas sobre o próprio futuro da moeda única. Ora, o que os mercados estão a testar é precisamente a existência de uma verdadeira e consistente União Económica e Monetária.
Recordo palavras de Jean Monet. Cito: “Não temos senão uma escolha: entre as mudanças para onde seremos arrastados ou aquelas que decidimos por nossa vontade realizar”. De novo hoje nos confrontamos com essa escolha: ou enfrentamos a crise com as medidas que se impõem ou seremos arrastados por ela para mudanças imprevisíveis e incontroláveis que põem em risco a própria União Europeia.
O tempo que enfrentamos exige acção e acção rápida. Os mercados não esperam por discussões labirínticas e negociações intermináveis. Custa a compreender, por exemplo, que as positivas decisões do Conselho Europeu de 21 de Julho ainda estejam prisioneiras de obstáculos políticos e formais. Tal como é inadmissível o happening quotidiano de discursos divergentes por parte dos líderes europeus. Este tempo exige, mais do que nunca, convergência, solidariedade e responsabilidade sem falhas.
Num ponto começa a haver convergência quase generalizada: um Estado da zona euro sob dificuldades não pode ser deixado cair em incumprimento descontrolado, sob pena de criar um efeito dominó de consequências imprevisíveis para o próprio projecto de integração europeia. O fracasso do euro poria em causa o mercado interno, alimentaria o retorno de nacionalismos e proteccionismos, enfraqueceria a Europa na cena internacional.
Ao contrário, é preciso reafirmar que a União Europeia tem os recursos, os instrumentos e os meios institucionais para superar esta crise. O que tem faltado é a vontade política para mobilizar uns e outros e fazê-lo com um método eficaz e de forma célere.
Em suma, a resposta à crise tem de ser europeia, sistémica e eficaz no curto prazo. Neste quadro, entendo que há medidas que se impõem e que não podem esperar.
Começando pelo reforço do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), instrumento fundamental para assistir os Estados em dificuldades. A sua dimensão tem de estar à altura dos riscos especulativos que, de resto, estão já identificados.
Outra intervenção que se impõe no imediato cabe ao Banco Central Europeu (BCE) que, ao longo dos seus doze anos de existência, tem tido uma acção extremamente positiva. Garantiu o mandato que lhe foi confiado, assegurando a estabilidade de preços, e tem contribuído para combater a crise financeira da zona euro. Presto a minha homenagem a Wim Duisenberg e a Jean-Claude Trichet pela forma como desempenharam as difíceis funções de Presidente do BCE.
A situação excepcional e de verdadeira emergência a que chegámos reclama mais do BCE. É necessária uma intervenção mais ampla e previsível no mercado da dívida soberana dos países solventes que enfrentam problemas de liquidez, a disponibilidade para uma intervenção ilimitada no mercado secundário, como defende Paul de Grauwe. Não se trata de operar uma intervenção descontrolada e de risco sem medida. Trata-se de um compromisso credível para matar cerce a especulação e garantir, por essa via, as condições para o funcionamento dos mercados da dívida soberana num quadro de estabilidade e confiança.
É uma função a exercer em último recurso, quando a pressão dos mercados atinge proporções insuportáveis, como é o caso. De resto, a generalidade dos economistas reconhece que, uma vez travada a especulação, essa função acaba por não ter que se materializar, ficando num plano meramente supletivo. As ameaças que recaem sobre a zona euro não recomendam que fiquemos amarrados a interpretações restritivas das normas que regem a União Económica e Monetária.
É claro que a intervenção do BCE no mercado da dívida soberana, tal como a do FEEF, tem de estar associada a uma condicionalidade estrita que garanta o cumprimento por parte dos Estados em dificuldades das políticas orçamentais e estruturais adequadas. O binómio solidariedade/responsabilidade tem de ser assumido por todos, Estados membros e instituições europeias.
A recapitalização e financiamento dos bancos europeus é outra medida urgente, que exige uma intensa concertação e a mobilização de instrumentos com natureza e escala de nível europeu. O reforço dos capitais dos bancos é um imperativo generalizado na Europa, tal como a necessidade de garantir liquidez através de instrumentos que superem as dificuldades de acesso aos mercados. Também aqui a UE, designadamente através do BCE e do FEEF, deve actuar como promotora e catalisadora activa de medidas concertadas a nível da zona euro.
Sem capitais que garantam capacidade para enfrentar a crise, sem liquidez para manter o crédito, os bancos não poderão assegurar o financiamento da economia, com efeitos dramáticos no plano económico e social, que mais não farão do que acentuar a crise, numa espiral com consequências imprevisíveis.
Tenho acompanhado de perto a controvérsia quanto à emissão de eurobonds. Não duvido que poderia ser uma poderosa resposta a esta crise. Todavia, a sua implementação está envolta em tantas indefinições, quer de natureza política, quer de natureza técnica, que a tornam impossível de levar à prática, num tempo compatível com as dificuldades do presente. Entendo, contudo, que os chamados eurobonds devem estar na agenda europeia, havendo, rapidamente, que clarificar o conceito e determinar os requisitos exigidos em termos de transferência de soberania para as instituições europeias e de alteração da arquitectura institucional da União Económica e Monetária.
Uma resposta efectiva à crise impõe, ainda, o aprofundamento da governação económica europeia. O Semestre Europeu e o Pacto Plus são um passo nessa direcção. Mas é preciso mais, como defendem a Comissão e o Parlamento Europeu. Há que ser claro neste ponto: o reforço do FEEF e a intervenção do BCE só se podem realizar num quadro em que os orçamentos e as políticas macroeconómicas dos Estados sejam adequadamente escrutináveis e respeitem um rumo equilibrado e sustentável.
Mas tal não implica a criação de novas estruturas, concorrendo com as actuais, mas o reforço das que existem, começando pelo papel central que cabe à Comissão Europeia.
A este propósito, não escondo a preocupação com que venho assistindo, nos últimos anos, à desvirtuação do método comunitário. A deriva intergovernamental está a contaminar o funcionamento institucional da União Europeia. Em vez de uma mobilização convergente, e de uma responsabilidade solidária por parte de todos os Estados e instituições, vamos constatando a emergência de um directório, não reconhecido, nem mandatado, que se sobrepõe às instituições comunitárias e limita a sua margem de manobra. Este é um caminho errado e perigoso. Errado por que ineficaz. Perigoso por que gerador de desconfianças e incertezas que minam o espírito da união.
O caminho certo é o do método comunitário, como a história da integração europeia eloquentemente demonstra. Foi com o método comunitário que a integração europeia se aprofundou e afirmou. Com a Comissão a constituir o centro de gravidade da iniciativa, o braço executivo das políticas e das acções comuns e o guardião dos Tratados. Ao Conselho Europeu, e não a um directório de alguns países, cabe a orientação política, e ao Conselho de Ministros cumpre tomar as decisões que enquadram a acção comunitária. É esta a fórmula institucional que garantirá a união da Europa.
Volto a repetir: a governação económica da zona euro tem de ser mais imperativa, rigorosa e eficaz. Mas é a Comissão Europeia que deve ser a charneira institucional para realizar, com equilíbrio e eficácia, essa missão.
Será necessário rever o Tratado de Lisboa?
A União Europeia tem combinado elementos federais, comunitários e de mera cooperação intergovernamental. É uma das suas marcas originais. Considero que é expectável e desejável que, a prazo, a união monetária seja acompanhada por uma verdadeira União Económica e Financeira, de modo a garantir não só a estabilidade monetária, mas também a estabilidade financeira e o crescimento económico.
Nessa perspectiva, a revisão, a prazo, dos Tratados terá de ser equacionada. Repito, a prazo, porque a crise não espera por uma revisão dos Tratados que se sabe ser inevitavelmente lenta e complexa.
Mas o combate à crise financeira tem de incluir, obrigatoriamente, uma agenda voltada para a promoção do crescimento económico e de criação de emprego. O saneamento das finanças públicas terá um resultado socialmente insuportável se não for acompanhado de recuperação económica e de criação de emprego. Cabe à União Europeia um papel central na promoção desse objectivo, reforçando os instrumentos de apoio à inovação e á competitividade, estimulando a iniciativa económica e o empreendedorismo.
Preocupa-me particularmente os níveis muito elevados de desemprego jovem na União Europeia, fruto de uma economia anémica e pouco competitiva e das fortes medidas de contenção orçamental.
As políticas de austeridade e as dificuldades de liquidez que enfrentam os países mais endividados devem ser compensadas por políticas voluntaristas de crescimento e emprego promovidas pela União Europeia, por políticas expansionistas por parte dos países superavitários e por uma prudente redução da taxa de juro de referência do BCE. É este o caminho que permitirá garantir, neste fase difícil, um horizonte de esperança e de confiança para todos os cidadãos da Europa, sem excepção.
Antes de concluir quero deixar-vos uma palavra sobre a situação no meu País.
Como é sabido, Portugal firmou um acordo de assistência financeira com a UE e o FMI. Esse programa colhe o apoio largamente maioritário do Parlamento e será, sem dúvida, cumprido na íntegra pelo Governo português. Portugal honrará plenamente os seus compromissos, reestabelecerá o equilíbrio das finanças públicas e levará por diante as reformas estruturais indispensáveis ao reforço da competitividade da sua economia.
Estão a ser exigidos duros sacrifícios ao povo português, que tem respondido com grande sentido de responsabilidade. É importante, também para a UE, que o exigente esforço de Portugal seja coroado de pleno sucesso. Para isso é necessário que a União Europeia enfrente a crise financeira com as medidas adequadas e em tempo certo, que tome as decisões sistémicas que se impõem para estabilizar a zona euro, fortalecer os sistemas financeiros e promover o crescimento económico.
Senhoras e Senhores,
Preocupado, mas confiante, é como defino o meu estado de espírito. Acima de tudo, quero, de novo, sublinhar que a Europa dispõe da capacidade e dos recursos para superar a crise. Se houver empenho político e uma solidariedade responsável, a União demonstrará, mais uma vez, a sua força.
Em 1946, logo a seguir à II Guerra Mundial, no célebre discurso de Zurique, dizia Churchill que só havia “um remédio eficaz para a tragédia europeia: voltar a criar a Família Europeia”. Esse remédio continua eficaz. E é preciso usá-lo sem restrições para impedir que a integração europeia regrida e volte a ser apenas uma melancólica utopia.
Na primeira metade do século passado, o grande poeta português Fernando Pessoa, inconformado com a situação, no seu país, em que “ninguém sabia que coisa queria, nem conhecia que alma tinha”, convocava o seu país e a sua gente, com um grito que ecoa, até hoje, no coração dos portugueses, nas horas difíceis: “Ó Portugal... é a Hora!”
Neste momento difícil da vida da Europa e dos europeus, ocorre-me muitas vezes este apelo. Espero sinceramente que a Europa saiba reconhecer que esta “é a Hora!”
Muito obrigado