Senhor Presidente da Câmara Municipal de Aveiro,
Senhora Presidente da Assembleia Municipal de Aveiro,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Esta é uma ocasião feliz. Comemoramos os 1050 anos da primeira referência escrita a Aveiro e os 250 anos da sua elevação a cidade.
Em 959, a condessa Mumadona nomeava no seu testamento as terras de sal de Alavario. Em 1759, por alvará de 11 de Abril, o rei D. José “houve por bem elevar a dita vila de Aveiro à dignificante categoria de cidade”.
São efemérides, ou seja, datas simbólicas que resgatam do esquecimento os factos e as pessoas que marcaram a vida comum.
Celebremos, pois Aveiro bem o merece.
Mas há mais razões para festejar. Neste mesmo ano de 2009 os aveirenses receberam uma excelente notícia: a consagração cultural e económica de um dos produtos mais característicos da sua gastronomia.
Os ovos moles de Aveiro foram incluídos na lista de produtos agrícolas e alimentares com a denominação de Indicação Geográfica Protegida. É o primeiro produto português de pastelaria que atinge esse estatuto.
Este doce tão afamado terá de se submeter a processos de controlo e certificação que garantem a qualidade de um produto de excelência.
No passado, aveirenses ilustres serviram a ideia de excelência. Recordo o grande orador do século XIX, José Estêvão, um político de envergadura nacional que nunca esqueceu a sua terra.
Sabe-se do seu empenho na construção das instalações do Liceu de Aveiro, estabelecimento escolar com tradições na excelência educativa. Em Janeiro de 1860, ultimava-se então a edificação, escreveu a seguinte carta, dirigida a Francisco José de Oliveira Queiroz, reitor do Liceu de Aveiro:
“- Queiroz, é indispensável que quanto antes (...) requisites pelo Ministério do Reino as estantes e mais mobília necessária. Não peçam muito para a mobília miúda – trezentos mil réis será demais – e cuidado em os utilizar com juízo.”
E foi assim, com impulso do representante local, empenho central e entusiasmo de todos os aveirenses, que se construiu e equipou o edifício liceal que, quinze anos depois, ainda era considerado o primeiro de Portugal. Aveiro demonstrou então, como agora, que sendo elevados na ambição e cuidadosos na despesa, muito podemos fazer.
Por exemplo, pode-se conseguir, como aconteceu com a doçaria tradicional, a consagração comunitária. Louve-se, neste particular, o papel da Associação de Produtores de Ovos Moles de Aveiro.
Doravante este doce só pode ser produzido em Aveiro. E deve ser confeccionado com matéria-prima local e de acordo com a receita tradicional. O cumprimento destas condições é o único modo de defender a reputação e a imagem dos ovos moles junto do consumidor.
Diz-nos o Caderno de Especificações e Obrigações dos Ovos Moles de Aveiro que os ingredientes são a água, os ovos e o açúcar. Mas atenção!Têm de ser combinados cuidadosamente de acordo com uma receita tradicional, sendo a qualidade controlada nos laboratórios das doceiras.
Concluímos, portanto, que a melhor maneira de respeitar a tradição é estar na vanguarda da tecnologia.
Eis o mundo em que vivemos. Mundo que, para ser compreendido, tem de ser interpretado cientificamente, o que me conduz à Universidade de Aveiro, ao seu esplêndido campus, ao seu corpo docente de eleição e ao seu magnífico contributo para o desenvolvimento regional e nacional.
Nos laboratórios das doceiras procede-se, então, ao arrefecimento e repouso da massa dos ovos moles e ao seu acondicionamento em hóstias ou em barricas.
As hóstias que acolhem a massa dos ovos moles devem ser recortadas a direito, “não sendo permitido o corte de zig-zag”. Mais um belo conselho.
As barricas de porcelana, com os seus motivos brancos e azuis, evocam os tradicionais e famosos azulejos aveirenses. Azulejos em que, desde há séculos, se retratam motivos locais. As figuras típicas: o marnoto, a tricana, a varina. E outros símbolos locais, como o moliceiro.
Expressão de um antigo modo de vida, aliança anfíbia do homem com a natureza, o moliceiro é ainda um símbolo cultural. As suas proas espatuladas e erguidas ostentam pinturas ora irreverentes, ora reverentes, irónicas e esperançosas, poéticas e saudosas. Em suma, a voz do povo.
Não deixeis desaparecer o moliceiro, porque nele está a alma aveirense. Preservar a identidade atrai os visitantes. E cria os alicerces em cima dos quais se constrói o futuro.
O moliceiro também surge pintado nas barricas de madeira dos ovos moles, tal como as salinas, os palheiros, o farol da Barra.
A Barra! A Barra de Aveiro, condição primeira para o progresso da região. O progresso sente-se no ar, lê-se na face dos aveirenses, constata-se no crescimento da cidade e no progresso das suas instituições, festeja-se nas ocasiões felizes.
Mas, numa história milenar, é inevitável que tenha havido, ao lado de momentos bons, outros menos agradáveis. A história desta cidade demonstra que Aveiro soube sempre ultrapassar as crises que a poderiam ter mortificado.
Recordo um período crítico: o encerramento natural da Barra, ocorrido em meados do século XVIII, que fechou a comunicação entre a laguna e o mar. O Homem teve de intervir na evolução da Ria, com vista a estabilizar a ligação com o mar.
Sei que no ano passado se celebrou condignamente o bicentenário de um acontecimento decisivo para Aveiro: a abertura da Barra. Nessa ocasião foram recordadas palavras luminosas do Capitão do Porto de Aveiro, proferidas em Maio de 1923:
“Durante 121 anos (...) foi despendido um avultado capital fornecido pelas forças locais sem o menor lucro directo; o balanço das vantagens económicas adquiridas durante um século demonstra-nos porém que apenas devemos lamentar os esmorecimentos, as interrupções, que não permitiram todas as que a contemplação do passado nos autoriza a considerar realizáveis.”
Não sei o que mais deve merecer a nossa admiração: se o facto de se tratar de um esforço da sociedade, se o carácter multigeracional do investimento realizado no Porto de Aveiro, se a capacidade inusitada para aguardar pelo devido retorno. Foi, tão só, mais um exemplo do carácter tenaz e empreendedor dos aveirenses.
Nestes tempos de dificuldades, não haverá, estou seguro, esmorecimentos nem interrupções.
Aveiro nunca baixou os braços na sua opção pela liberdade. É uma longa tradição que honra a cidade e responsabiliza os seus cidadãos. Temos hoje o dever de evocar a memória daqueles aveirenses que, evidenciando coragem e espírito cívico, combateram em nome da liberdade.
Neste mês de Maio, relembramos os heróis do 16 de Maio de 1828 que se levantaram contra o absolutismo. E relembramos ainda todos aqueles que, mais perto de nós no tempo, em Maio de 1969, aqui participaram no 2º Congresso Republicano.
Neste quadragésimo aniversário, recordo, em particular, a memória do Dr. Mário Sacramento, o principal organizador e o grande inspirador dos Congressos Republicanos de Aveiro. Não lhe foi concedido ver a concretização dos seus anseios.
Na sua despedida literária e política, Mário Sacramento concluía com as seguintes palavras: “Façam um Mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!”
Em Aveiro, terra de ovos moles mas de gente rija, constrói-se um mundo melhor todos os dias. Mas é preciso tentar sempre fazer um pouco mais.