Esta sessão solene, que todos os anos tem lugar neste magnífico Salão Nobre, constitui um momento privilegiado para que os diversos protagonistas do nosso sistema judicial prestem contas aos Portugueses sobre o estado da Justiça.
Como determina a nossa Lei Fundamental, a Justiça é administrada em nome do povo. Por isso, é natural que os cidadãos tenham o direito de, em cada ano, receber um balanço da forma como tem funcionado o sistema judicial português.
Manter uma relação de verdade com os cidadãos e prestar contas do exercício de funções públicas são dois valores que considero essenciais da nossa cultura republicana e democrática.
A abertura do ano judicial é, pois, um tempo de olhar para o futuro mas também um momento de balanço.
Neste contexto, diversas interrogações se podem colocar: no ano que passou, o nosso sistema judicial funcionou de forma mais eficaz? Foram satisfeitas as legítimas expectativas dos Portugueses quanto ao exercício atempado e ponderado da função jurisdicional? A qualidade da legislação produzida aumentou de forma visível?
Para o exercício da função judicial, a qualidade da legislação constitui, de facto, um elemento fundamental. É certo que desde há muito que se reconhece que os juízes são muito mais do que a mera «boca da Lei» de que falava Montesquieu. Mas não é menos certo que, pese o seu papel activo e criativo na interpretação e na aplicação da lei aos casos concretos, os magistrados necessitam de leis de qualidade, redigidas numa linguagem precisa e segura, dotadas de soluções normativas harmónicas e consistentes. Para uma justiça melhor, é necessário legislar melhor.
A qualidade da legislação é ainda fundamental num outro plano. A lei deve ser compreensível pelos cidadãos e adequada à sociedade em que vivemos. Infelizmente, nem sempre isso acontece. Produz-se por vezes legislação que tem em vista uma realidade que não é a nossa, que não tem em devida conta o País que somos, o País que queremos e, sobretudo, o País que podemos ser.
O Direito não existe para satisfazer interesses de alguns ou para construir utopias, mas para resolver os problemas dos cidadãos. O Direito existe para ultrapassar tensões, não para as aumentar. O Direito tem de resolver os problemas reais das pessoas, ao invés de se converter, ele próprio, numa fonte de conflitos.
Legislar é fazer escolhas, o que implica, não raras vezes, desagradar a alguns. Simplesmente, existe uma grande distância entre aquilo que constitui uma legítima opção política de quem está mandatado democraticamente e aquilo que representa um elemento artificial de perturbação da vida colectiva.
Por isso, tenho insistido na necessidade de as leis serem produzidas em estreita articulação com aqueles que conhecem as realidades em causa, designadamente a realidade judiciária, ou seja, os operadores do Direito.
A perfeição da lei não depende apenas do seu apuro técnico-jurídico, nem legislar é um exercício académico. A qualidade das leis decorre, em boa medida, do modo como as normas se adequam à sociedade em que vivemos.
O tema da qualidade das normas jurídicas tem vindo a suscitar a minha crescente preocupação, na medida em que toda a lei que seja incerta, mal avaliada quanto aos seus efeitos ou portadora de normas de duvidosa constitucionalidade inquina o sistema de Justiça.
A legislação de qualidade aumenta a eficiência das políticas públicas, diminui a despesa, gera segurança jurídica nas empresas e nos cidadãos e reduz a litigiosidade junto dos tribunais.
A consciencialização da importância da qualidade das leis tem levado os Estados mais desenvolvidos a introduzir importantes reformas, tendo a União Europeia lançado um ambicioso plano com aquele objectivo, como ferramenta jurídica e técnica da Estratégia de Lisboa.
O plano implica o desenvolvimento, em todos os Estados membros, de uma nova cultura e de um novo modelo institucional de perfeição legislativa que, a par da simplificação e boa redacção das normas, supõe uma avaliação exigente do impacto das leis de maior relevo, nomeadamente das que envolvam grandes investimentos públicos ou que procedam a reformas administrativas e judiciárias de grande alcance.
O diagnóstico precoce, que resulta da avaliação prévia do impacto das leis na sua fase de concepção, implica uma estimativa de custos e benefícios, uma audição criteriosa dos interessados, uma avaliação de riscos e um juízo ponderado sobre a necessidade e adequação das medidas em causa.
A avaliação prévia das normas permite reforçar a responsabilidade do legislador pela adequação das leis que aprova, minimiza o insucesso de muitas políticas públicas, reduz formas de contestação desnecessária a regimes jurídicos mais controversos. É também através dessa avaliação que se contabilizam os recursos necessários para a boa aplicação das leis.
Por outro lado, a avaliação sucessiva do impacto das leis mais importantes evita que o legislador, depois de aprovar um determinado regime jurídico, se desinteresse posteriormente pelos efeitos que o mesmo produz.
Portugal, tal como outros Estados-membros da União, adoptou políticas de qualidade legislativa cuja eficiência deve ser regularmente escrutinada. Tendo-se registado alguns avanços no âmbito da simplificação de procedimentos, importa verificar, no entanto, se muitas das medidas se mostraram adequadas ou se foram efectivamente adoptadas e executadas.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Se do legislador se exige um esforço acrescido no sentido de uma maior qualidade das leis, sobre os aplicadores do Direito recaem também particulares responsabilidades.
Na actual conjuntura de dificuldades colectivas que todos atravessamos, os operadores judiciários têm de se consciencializar de que o sistema judicial não vive à margem da realidade do País, que o mundo dos tribunais não é um universo próprio e fechado, situado fora do tempo que é o nosso.
Esta é, de facto, uma etapa da vida nacional em que a questão dos custos do sistema de justiça merece uma reflexão profunda e actuante.
Não me refiro, obviamente, aos custos de funcionamento do aparelho judiciário, o qual, como todos os sistemas de prestação de serviços públicos, representa um elemento de despesa para os contribuintes. Refiro-me, isso sim, à necessidade de se ter em conta os custos materiais e imateriais associados às deficiências e aos atrasos na realização da Justiça.
Mesmo compreendendo que a Justiça tem ritmos próprios de concretização, é inquestionável que existem ainda entraves no funcionamento dos tribunais que constituem um dos graves problemas com que o País actualmente se defronta.
Para a competitividade da nossa economia, para a dinâmica dos agentes económicos, para a credibilização de Portugal no exterior é fundamental possuirmos um ordenamento jurídico e um sistema judicial susceptíveis de merecerem a confiança dos cidadãos.
O sistema financeiro só apoiará o investimento se tiver a garantia de que a Justiça protegerá os seus créditos, caso tal seja necessário.
Os empresários têm de saber que a Justiça estará à altura da sua missão no momento em que, por qualquer motivo, necessitarem dela.
Os investidores nacionais e estrangeiros necessitam de saber que Portugal é um Estado de direito, em que o incumprimento das obrigações é sancionado atempadamente pela lei e pelos tribunais.
Os operadores judiciários são também interpelados pela actual situação económica e financeira. Muito provavelmente, essa situação acabará por se projectar no sistema judicial. A crise económica poderá trazer consigo um aumento de litigiosidade.
Para o relançamento da economia, para o combate a novas e mais violentas formas de criminalidade, a Justiça tem de ser capaz de fornecer uma resposta eficaz, adequada e em tempo oportuno.
De entre as reformas da área da Justiça operadas em 2008, uma merece, neste contexto, uma especial referência, pela importância que se reveste na melhoria do sistema geral da administração da justiça, designadamente, no julgamento mais célere e qualificado dos processos judiciais.
Refiro-me à lei de organização e funcionamento da rede dos tribunais judiciais. Com a criação em vários municípios de juízos especializados nas áreas cíveis, do comércio, da execução e do trabalho, dotados de uma nova gestão administrativa e processual, embora em regime experimental, espera-se que os cidadãos e as empresas passem a obter uma mais rápida resolução dos seus conflitos e uma atempada execução das decisões proferidas.
A nova organização judiciária, que vigorará em pleno a partir de Setembro de 2010, será seguramente um momento decisivo para a justiça portuguesa, que todos desejamos mais próxima dos cidadãos, mais qualificada e especializada, dotada de todos os instrumentos que modernizem os métodos de acção e agilizem os procedimentos, bem como de um rigoroso sistema de avaliação e acompanhamento dos seus resultados.
O País precisa de uma Justiça que transmita confiança aos cidadãos, que resolva de vez os problemas da morosidade no julgamento dos processos e que garanta um acesso justo dos cidadãos aos tribunais.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Como já referi neste Salão Nobre, tenho consciência das dificuldades que os magistrados enfrentam todos os dias no exercício das suas funções. A eles é devida uma palavra de apreço pelo modo como, em condições tantas vezes adversas, lidam com os milhares de processos que todos os anos afluem aos nossos tribunais.
É justamente por isso que insisto na necessidade de uma cultura judiciária de responsabilidade. Se a confiança dos cidadãos nas instituições é essencial em todos os momentos, ela torna-se dramaticamente necessária quando atravessamos tempos difíceis.
Como disse recentemente, na mensagem que dirigi aos Portugueses no início do ano, em 2009 vamos todos necessitar muito uns dos outros. No sector da justiça, os diversos protagonistas irão também necessitar muito uns dos outros.
Tenho esperança de que os agentes políticos, dum lado, e os operadores judiciários, do outro, saberão estar à altura dos grandes desafios que 2009 e os anos seguintes colocam ao nosso País. Aquilo que está em causa, o futuro das gerações vindouras, é demasiado importante para nos dividirmos em torno de controvérsias que pouco dizem ao comum dos Portugueses.
Neste dia, em que solenemente se procede à abertura do ano judicial, expresso o meu apreço por todos os operadores judiciários: magistrados, advogados, funcionários, a quem desejo um frutuoso trabalho para bem do País.
Obrigado.