Discurso do Presidente da República na Sessão de Abertura do Fórum Gulbenkian de Saúde 2008/2009
Fundação Calouste Gulbenkian, 8 de Abril de 2008

Senhora Administradora da Fundação Calouste Gulbenkian, Dra. Isabel Mota,
Senhor Comissário do Fórum Gulbenkian de Saúde, Prof. João Lobo Antunes,
Senhores Conferencistas,
Minhas Senhoras e meus Senhores,

Quero começar por felicitar a Fundação Calouste Gulbenkian pela iniciativa de mais uma edição do Fórum Gulbenkian de Saúde.

A qualidade da reflexão e do debate desenvolvidos neste Fórum ao longo dos últimos dez anos, em torno dos problemas da saúde, em Portugal e no Mundo, tem-lhe conferido um inegável prestígio. Atestam-no a valia das personalidades que nele têm participado, assim como os inestimáveis contributos que dele têm emergido para que possamos encontrar melhores soluções para os problemas que, neste particular domínio, afectam a nossa sociedade.

Congratulo-me pela escolha do tema para este ano: o envelhecimento. Para cada um de nós, trata-se da concretização da lei da vida, mas, para as sociedades em que vivemos, o envelhecimento, enquanto fenómeno estrutural, representa um desafio cujos contornos e impactos estão longe de ser devidamente identificados e avaliados.

Duvido que a opinião pública e os cidadãos portugueses estejam suficientemente informados e conscientes das dimensões desse desafio, dos problemas que levanta, dos processos de mudança que exige, e também das oportunidades que nele devem ser procuradas. Nesta perspectiva, nunca é demais retomarmos o debate sobre o envelhecimento em toda a sua abrangência.

Os cenários e os números são por demais conhecidos, mas nem por isso deixam de ser merecedores de uma atenção redobrada.

No final desta década, a população portuguesa deverá atingir o seu máximo histórico: cerca de 10 milhões e 600 mil habitantes. Nessa altura, a população com 65 e mais anos representará cerca de 18 por cento do total.

Se projectarmos as actuais tendências para quarenta anos mais tarde, em meados do século XXI a população portuguesa ver-se-á reduzida em cerca de 1 milhão e 300 mil habitantes e os idosos representarão, nessa altura, 32 por cento do total.

Em média, os portugueses viverão mais seis anos e o actual índice de envelhecimento será multiplicado por quase duas vezes e meia, passando dos actuais 108 para 243 idosos por cada 100 jovens. Ou seja, a manterem-se as actuais tendências, a população com 65 e mais anos representará, em 2050, cerca de um terço do total da população portuguesa.

Trata-se de uma alteração profunda da estrutura demográfica e social portuguesa, que exige das próximas gerações novas formas de encarar o envelhecimento e novas soluções na afectação dos recursos disponíveis.

Na opinião pública e nos órgãos de comunicação social, a preocupação tem-se centrado, quase exclusivamente, nos custos do envelhecimento. O impacto sobre os sistemas de pensões, a sua sustentabilidade financeira, ou a pressão sobre os sistemas nacionais de saúde decorrente dos custos acrescidos da longevidade têm sido temas abordados com alguma insistência.

Compreendo essa perspectiva e reconheço, naturalmente, a sua importância. Mas quero propor-vos uma reflexão mais alargada.

O envelhecimento não deverá ser visto como uma ameaça ou como um fardo para o bem-estar das novas gerações.

Não é o facto de estarmos a falar de pessoas mais idosas que nos deve impedir de as considerar também como parte das soluções que nos abrem novas portas para o futuro. Não é o facto de estarmos a falar de pessoas estatisticamente inactivas que nos autoriza a ignorar ou a prescindir do seu contributo para a criação de riqueza e de bem-estar.

É precisamente por se tratar de pessoas que não devemos tomá-las apenas como um número, um custo ou um encargo.

O fenómeno do envelhecimento obriga-nos, antes de mais, a repensar o nosso sistema de valores e os modelos de organização social. A forma como encaramos a juventude, a idade activa, ou a velhice resulta de uma concepção muito rígida do nosso ciclo de vida. O tempo da formação, o tempo do trabalho e, por último, o tempo do ócio inactivo sucedem-se a uma cadência tão invariável que torna difícil qualquer adaptação ou capacidade de gestão desse ciclo de vida.

E, no entanto, reconhecemos hoje que a educação e a aprendizagem não se podem confinar ao tempo do ensino formal e inicial. Hoje falamos de educação e aprendizagem ao longo da vida. Pela mesma lógica, porque não reconhecemos o princípio do envelhecimento activo?

Porque não construímos soluções mais flexíveis de transição da vida activa para a velhice, soluções que permitam uma combinação de trabalho, lazer e aprendizagem ajustada ao potencial que cada indivíduo representa?

Se pensarmos na experiência e na competência acumuladas por um cidadão ao longo da sua vida activa, facilmente concluiremos que todos os anos desperdiçamos um capital que poderia ser muito útil para as empresas, para os trabalhadores mais jovens, para as organizações da sociedade civil – como é o caso das instituições de solidariedade social –, ou mesmo para as organizações cívicas e culturais.

No caso das empresas, questiono-me sobre se a obsessão sobre o contínuo rejuvenescimento dos seus trabalhadores se traduz sempre num ganho efectivo de eficiência e se tal não poderá contribuir para um défice de identidade, de cultura organizacional e, mesmo, de rentabilidade.

No caso das organizações cívicas, tenho vindo a destacar o papel do voluntariado e como o aproveitamento da experiência de muitos quadros de empresas, entretanto passados à reforma, pode ser um contributo para que, com os mesmos recursos materiais, essas organizações prestem melhores serviços e os tornem acessíveis a um maior número de cidadãos carenciados.

Confesso que sinto orgulho ao ver milhares de voluntários a trabalhar em instituições de solidariedade social, se bem que tenha de reconhecer que temos ainda uma margem de progressão muito grande, atendendo aos baixos níveis de participação cívica e de voluntariado que se verificam em Portugal, em comparação com os nossos parceiros europeus.

Tradicionalmente, assimilamos a velhice ao esgotamento do potencial da força de trabalho e entendemos que lhe corresponde um merecido descanso do esforço desenvolvido durante a vida activa. Sendo uma visão compreensível, na perspectiva do esforço físico que predomina nas sociedades industriais e agrárias, torna-se, no entanto, quase paradoxal nas sociedades em que se valoriza mais o conhecimento e a experiência.

Estabeleceu-se a ideia de que cada cidadão reformado representa mais um posto de trabalho liberto para um jovem trabalhador. Tal seria verdade, porventura, no âmbito das sociedades com fraca mobilidade profissional e de limitado dinamismo. Não é necessariamente verdade nas sociedades de hoje, nem o devendo ser no futuro.

Num tempo em que se exige maior flexibilidade ocupacional, maior adaptabilidade para enfrentar sistemas tecnológicos onde a obsolescência é acelerada, mas também em que se exige maior capacidade para entender a relevância da inovação social, aquela ideia é cada vez mais questionada. A criação de novos postos de trabalho tende a ficar menos dependente da libertação ou destruição dos existentes.

Nesta perspectiva, convém anteciparmos e compreendermos o facto de os trajectos e as carreiras profissionais se tornarem cada vez menos lineares e mais diferenciados, ao longo da vida activa.

É, por isso, urgente pensarmos em envelhecimento como prolongamento da actividade, encarando a transição do mercado de trabalho para a reforma como um processo mais dilatado e mais diversificado nas possíveis combinatórias de actividade a tempo parcial, lazer e aprendizagem.

Quando hoje já se fala da 4.ª idade, é urgente repensarmos a 3.ª e as formas como vamos transitando e preparando cada uma delas.

Estamos a falar da criação de novos estilos de vida e de não continuarmos a tentar enfrentar os problemas do século XXI com as soluções do século XX.

Estou convencido de que, se forem dados passos nesse sentido, poderemos melhorar a qualidade de vida e o bem-estar de milhares dos nossos idosos de hoje e de amanhã.

Convém não esquecer, a propósito, que uma parte da pressão exercida pelo envelhecimento populacional sobre os sistemas de saúde resulta muito mais da inactividade e da falta de integração social do que propriamente da doença. A mudança abrupta de estilo de vida, a falta de reconhecimento pela sua utilidade, o isolamento ou o vazio dos afectos, levam milhares de idosos a conceber a sua relação com os profissionais de saúde como um refúgio onde se tenta encontrar um pouco mais de atenção e de carinho.

Precisamos, na verdade, de mais inovação social e de maior capacidade para responder aos estímulos e desafios que o futuro nos coloca. Seria bom que essa inovação resultasse da iniciativa dos cidadãos, do dinamismo das empresas e das organizações, da capacidade de concertação estratégica entre os diferentes agentes económicos, sociais e culturais, assegurando o Estado uma envolvente favorável ao seu desenvolvimento.

A ideia de envelhecimento activo pode constituir-se como um dos domínios privilegiados de inovação social, sem que para isso fiquemos eternamente dependentes da iniciativa dos organismos públicos e de decisão política. Soluções como o recurso planeado ao trabalho a tempo parcial, aos bancos de tempo, ao prolongamento da vida activa devidamente remunerado, terão de ser valorizadas.

Por mais surpreendente que possa parecer, a nossa legislação laboral já permite algumas dessas soluções, mas nem por isso os agentes e as organizações recorrem a essas modalidades. Neste, como em tantos outros domínios, não é por falta de leis que o país não avança.

Talvez seja mais por falta de iniciativa, por escassez de espírito empreendedor, pela dificuldade que temos em nos libertarmos da dependência do Estado e pela claustrofobia da regulação burocrática e centralizada.

Repensar o envelhecimento em todas as suas dimensões ajudará, decerto, a prepararmo-nos para enfrentar as suas consequências e para encontrar as melhores soluções para os problemas que suscita. Coloca-se, aqui, um requisito fundamental: não basta encontrar soluções técnica e economicamente eficazes que não sejam, ao mesmo tempo, humanamente dignificantes.

Estou certo de que a reflexão e o debate que terá lugar neste Fórum Gulbenkian de Saúde será um contributo importante para que o desafio do envelhecimento seja, em Portugal, encarado numa perspectiva mais ampla e construtiva.

Obrigado.