O Presidente da República enviou à Assembleia da República uma mensagem a propósito da devolução do diploma relativo à aprovação da Lei do pluralismo e da não concentração dos meios de comunicação social.
É o seguinte o teor da mensagem do Presidente da República:
“Senhor Presidente da Assembleia da República
Excelência,
Tendo recebido, para ser promulgado como lei, o Decreto nº 265/X da Assembleia da República, que aprova a Lei do pluralismo e da não concentração dos meios de comunicação social, decidi, nos termos do artigo 136º da Constituição da República, não promulgar aquele diploma, com os fundamentos seguintes:
1 – A liberdade de imprensa representa um valor fundamental do Estado de direito democrático, em articulação com a liberdade de expressão e informação, a qual, nos termos do artigo 37º da Constituição, compreende o direito de informar, de se informar e de ser informado.
Determina ainda a Constituição, no nº 4 do seu artigo 38º, que o Estado deve assegurar a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social e impedir a sua concentração, designadamente através de participações múltiplas ou cruzadas.
2 – Neste sentido, não pode ser questionada a aprovação de medidas tendentes a garantir o pluralismo dos meios de comunicação social e a impedir que a sua concentração possa, no limite, representar uma ameaça para as liberdades de imprensa e de informação.
3 – Esta matéria possui, aliás, uma tal relevância que se encontra em estudo nas instituições comunitárias, devendo citar-se, a este respeito, o documento «Comission Staff Working Document – Media pluralism in the Member States of the European Union» [SEC(2007)32], o qual refere expressamente que não foram ainda identificados os indicadores capazes de aferir, de forma objectiva e concreta, o pluralismo «real» dos meios de comunicação nos diversos Estados da União.
Nesse documento, a Comissão Europeia comprometeu-se a apresentar um estudo que identifique tais indicadores, encontrando-se a sua realização a cargo da Universidade de Lovaina e estando a sua conclusão prevista para meados do corrente ano, segundo a informação oficial disponibilizada pela «Task Force for Co-ordination of Media Affairs».
4 – Assim, é questionável, desde logo, que se haja pretendido introduzir uma alteração deste alcance e desta profundidade no sector da comunicação social num momento em que a União Europeia se encontra a estudar e debater esta problemática, não parecendo existir entre nós, ao contrário do que porventura sucederá noutros países, um défice de pluralismo da comunicação social que justifique a premência da emissão de um diploma desta natureza.
5 – Não por acaso, o presente diploma evidencia a sua própria precariedade, salvaguardando, no nº 3 do artigo 21º, a aplicação das disposições de Direito Comunitário que, na sequência dos trabalhos e das discussões em curso, venham a ser emitidas.
6 – A lei agora aprovada poderá, assim, vir, a breve trecho, revelar-se desconforme ao Direito Comunitário ou ficar aquém das medidas nele consignadas com vista a garantir, num domínio tão sensível como este, o pluralismo informativo e a transparência da titularidade dos meios de comunicação. Ora, não só deve existir estabilidade das disposições que regem esta actividade como é altamente aconselhável, até por efeito da crescente internacionalização dos investimentos no sector, uma harmonização de regras no espaço europeu, não devendo contribuir-se desnecessariamente para a perda de competitividade dos grupos nacionais de comunicação social.
7 – Além do mais, deve atender-se ao facto de, justamente em virtude da importância desta matéria para a salvaguarda do Estado de direito democrático, a Constituição impor, em norma específica, o artigo 168º, nº 6, alínea a), a aprovação por uma maioria muito ampla – dois terços dos Deputados – da lei respeitante à entidade de regulação da comunicação social. Daí que sobre esta entidade impenda um especial dever de rigor e independência no exercício da sua missão. Daí, também, que as matérias atinentes à liberdade de informação devam politicamente ser objecto de um consenso interpartidário e plural, o que não sucedeu no presente caso, justificando-se, assim, um esforço adicional para alcançar tal desiderato.
8 – A articulação das normas dos artigos 20º e 21º da presente lei, sobre a averiguação dos riscos para o pluralismo e a independência, suscita um conjunto muito vasto de problemas.
9 – Desde logo, a quantificação das percentagens referidas no artigo 20º será feita através dos «instrumentos de aferição reconhecidos no meio». Ora, o uso deste conceito indeterminado, que o artigo 2º do diploma não densifica, pode criar grande instabilidade no sector, porquanto não existe consenso em torno da fiabilidade de alguns meios de aferição actualmente utilizados.
Daí que uma medida deste género só devesse ser aplicada após se ter obtido um reconhecimento generalizado dos instrumentos de aferição que irão medir a circulação média por edição, na imprensa escrita, e as audiências, na rádio e na televisão. Caso contrário, a própria aplicação deste regime poderá levar as empresas com maior audiência a deixarem de reconhecer a fiabilidade de tais meios de aferição, o que criará graves problemas no sector e poderá ter efeitos contraproducentes até para alcançar o fim de uma maior transparência de mercado.
10 – Emerge aqui, de facto, um paradoxo que deve ser salientado. O presente diploma, neste particular, tem o objectivo de aumentar o controlo das entidades públicas sobre as empresas; simplesmente, o instrumento a que recorre para efectuar tal controlo – no fundo, o alicerce de todo o edifício fiscalizador – é aquele que os privados reconheçam ou não como credível. Se acaso deixar de ser «reconhecido no meio» (artigo 20º), o instrumento de aferição deixará de poder servir de padrão de referência – e, logo, de padrão de controlo. Desta paradoxal convergência entre um acréscimo de intervenção pública, quanto aos objectivos, e uma dependência do reconhecimento privado, quanto aos pressupostos, poderão emergir graves problemas para o futuro da comunicação social em Portugal.
11 – Por outro lado ainda, a norma do artigo 21º assume a sua própria precariedade, ao afirmar «sem prejuízo dos [indicadores de pluralismo e independência] que vierem a ser adoptados pelo direito comunitário», o que atesta, uma vez mais, o carácter inoportuno deste diploma.
12 – Sempre se poderá questionar ainda o facto de o critério indiciário da «influência» de um dado meio de comunicação social ser, afinal, a sua receptividade por parte do público. Se é certo que a uma maior audiência corresponderá, em abstracto, uma maior «influência», não é menos certo que desta forma pode acabar por se sancionar aqueles que, pelo seu mérito e pela qualidade da sua oferta, conseguem captar maiores audiências.
13 – O ponto é tanto mais delicado quanto o que se prevê, relativamente às empresas de maior sucesso, será, de algum modo, uma «inversão do ónus da prova», cabendo-lhes demonstrar que não têm o sucesso que os meios de aferição evidenciam – o que é, por um lado, absurdo numa lógica de mercado (no fundo, uma empresa irá demonstrar que não possui o êxito que lhe atribuem), como é lesivo para a própria fiabilidade dos meios de aferição. Assim, se uma empresa conseguir provar que os instrumentos de aferição não são fidedignos – uma hipótese que o artigo 21º expressamente prevê – toda a credibilidade e todo o funcionamento deste sistema de averiguações serão postos em causa.
14 – Aqui reside, de facto, uma das debilidades estruturais do mecanismo de «averiguação dos poderes de influência»: todo o seu funcionamento assenta num instrumento de medição que não se especifica qual seja e, mais ainda, que depende da aceitação pelos próprios visados.
Na verdade, o presente diploma pretende aferir um elemento qualitativo, difuso e algo intangível (a «influência») através de padrões quantitativos que são aferidos por procedimentos técnicos que, nesta fase, ainda não possuem uma fiabilidade completa, necessitando de ser «reconhecidos pelo meio». De resto, em que consiste «o meio» e em que se materializa o «reconhecimento»?
Ao que acresce que as possibilidades de defesa concedidas às empresas visadas assentam igualmente em conceitos indeterminados («existência de expressão e confronto das diversas correntes de opinião», «mecanismos de salvaguarda da independência dos jornalistas e directores», «diversidade das orientações editoriais»), o que, no fundo, acabará por conferir à entidade reguladora um poder decisório de contornos difíceis de avaliar e até de escrutinar publicamente.
15 – Tudo isto decorre de um pressuposto de base que deveria ser objecto de ponderação. O presente diploma, nos seus artigos 20º e 21º, parte de duas ideias essenciais: (1) a de que maior audiência é sinónimo de maior influência; (2) a de que a maior influência equivale necessariamente a um risco para o pluralismo e para a independência. Ora, nenhuma destas ideias se encontra demonstrada. Ainda que com escassa audiência, uma publicação pode ser extremamente «influente». E o facto de ser «influente» não significa menor independência – tal capacidade de influência pode decorrer justamente da sua marca de pluralidade e de independência em face do poder. Ao invés, a circunstância de uma dada empresa ter uma grande aceitação por parte do público não significa necessariamente que ela seja menos independente – o sucesso que possui pode justamente conferir-lhe maior solidez e, logo, maior independência face ao poder político ou outros poderes.
16 – Em síntese, o diploma em causa pretende alcançar um objectivo saudável – a independência dos meios de comunicação –, partindo de um pressuposto discutível: o de que a maior ou menor independência de um meio de comunicação se afere pelo nível de adesão que aquele suscita junto do público.
17 – Deve ainda ser ponderada a restrição ao acesso a actividades de comunicação social por parte de entidades públicas, definida no artigo 13º do presente diploma, sem prejuízo de se reconhecer, como sempre sustentei, que as empresas desse sector devem, em regra, ser da titularidade de entidades privadas.
18 – Importa ter presente que, nos termos da Constituição, não devem existir sectores de actividade económica vedados ao Estado e demais entidades públicas, estando a coexistência dos sectores de propriedade salvaguardada pelo artigo 82º da Lei Fundamental.
19 – Ora, na actual conjuntura económica, e até para salvaguardar a própria independência dos meios de comunicação social, não é de excluir liminarmente a possibilidade de, à semelhança do que ocorreu noutros sectores, o Estado ou outras entidades públicas tenham a necessidade imperiosa de intervir neste domínio da vida económica e empresarial.
20 – Simplesmente, a restrição de acesso prevista no artigo 13º, nos termos em que está formulada, veda por inteiro essa possibilidade, como veda a possibilidade de o Estado e demais entidades públicas desenvolverem actividades num domínio da vida económica, o que pode pôr em causa a prossecução de interesses públicos de relevo, incluindo o próprio pluralismo e a independência dos meios de comunicação social.
Por estes motivos, decidi, nos termos do artigo 136º da Constituição da República, não promulgar o Decreto nº 265/X da Assembleia da República.
Com elevada consideração,
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Aníbal Cavaco Silva”
02.03.2009