Discurso do Presidente da República na Sessão Solene das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas
Porto, 10 de Junho de 2006
Neste Dia de Portugal saúdo todos os Portugueses.
Esta é uma data festiva, em que Portugal se reencontra consigo mesmo para celebrar a memória do seu Poeta maior e para saudar as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo.
Não é preciso explicar o motivo pelo qual foi escolhido o Porto como cidade anfitriã das primeiras comemorações do 10 de Junho do meu mandato presidencial.
Daqui houve nome Portugal. E daqui sempre houve o que de melhor existe na portugalidade: uma vontade granítica de triunfar, uma frontalidade orgulhosa e leal, a indomável ambição de ser maior. Aqui, nesta cidade do Porto, na alma livre das suas gentes de trabalho e de palavra, residem os valores mais perenes do País que hoje celebramos.
O 10 de Junho é a ocasião mais propícia para Portugal se pensar como futuro. Não comemoremos esta efeméride como um ritual passadista em que se exaltam nacionalismos que perderam sentido no nosso tempo. E também não vejamos no 10 de Junho o mero pretexto para uma comemoração que, de tão repetida, corre o risco de se esvaziar de sentido.
Temos de assinalar o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas com uma perspectiva do passado e uma visão para o futuro.
Recebemos a herança de um passado ilustre. Mas temos de estar conscientes de que a melhor forma de evocar a História é enfrentando os desafios que o País tem hoje pela frente.
A obra de Camões traduz esse misto de orgulho pelo passado e de preocupação pelo amanhã que deve presidir às opções que temos continuamente de fazer.
No Dia de Portugal e de Camões celebramos o Portugal que não se conforma com a falta de ambição e que conhece o êxito em muitos sectores onde quis e soube afirmar-se. O Portugal que quer olhar o futuro com determinação, coragem e vontade de vencer.
Celebramos, também, o inestimável património que é a língua portuguesa, partilhada por outros sete Estados que a têm por língua oficial e que a utilizam na sua prática política, jurídica e administrativa, na comunicação técnica e científica, na criação literária e artística.
Neste dia 10 de Junho quero interpelar directamente os Portugueses, todos e cada um, exortando-os a reflectir sobre o que desejam e o que se dispõem a fazer pelo seu País.
Entre os Portugueses de ontem e os Portugueses de amanhã, que papel está reservado aos Portugueses de hoje?
Na vida pessoal, na família, no trabalho, no comportamento cívico, na atitude para com os outros, no pleno aproveitamento dos recursos de que dispomos, temos estado à altura das nossas responsabilidades e das gerações que nos precederam?
Ambicionamos um País mais rico e mais justo, uma sociedade que não seja atravessada por tantas assimetrias e desigualdades, um território mais equilibrado no desenvolvimento de todas as suas parcelas.
Desejamos um Portugal com recursos humanos mais qualificados, com empresas mais competitivas, com serviços públicos de qualidade.
Precisamos de um sistema de justiça eficiente e acessível, a que os cidadãos possam recorrer com confiança na celeridade e eficácia das decisões.
Desejamos, enfim, um Portugal que se reveja no melhor do seu património histórico e cultural e que saiba, não só preservá-lo, mas também promovê-lo e torná-lo maior, na riqueza e criatividade das suas manifestações.
A insatisfação colectiva, que nos levou por mares tão longínquos, é um dos traços mais salientes do nosso destino comum. Mas também o é a coragem para enfrentar dificuldades. Sem ela, teríamos ficado reféns da resignação.
Sabemos bem, e a história demonstra-o: Portugal será essencialmente o que dele fizermos. Ninguém o fará por nós.
Quero, pois, neste 10 de Junho, fazer um apelo aos Portugueses a que não se resignem e que não se deixem vencer pelo desânimo ou pelo cepticismo.
Isso seria indigno do nosso passado, um desperdício do nosso presente e o adiar do nosso futuro.
Devemos comemorar o dia 10 de Junho com confiança nas nossas capacidades como pessoas e como Povo, na certeza de um futuro com mais progresso e bem-estar social.
Portugueses
Há uma certa tendência para atribuir aos outros muito daquilo que nos acontece.
Damos a impressão de que não nos conformamos com as coisas e, no entanto, esmorecemos na vontade de as mudar.
Acreditámos que as riquezas da Índia, do Brasil ou da África ou que os fundos da União Europeia seriam suficientes para trazer o progresso por que ansiávamos.
Não nos iludamos. No mundo cada vez mais interdependente, globalizado e competitivo, vivemos cada vez mais dependentes de nós próprios, do nosso trabalho, da capacidade para defendermos os nossos interesses no plano externo. As condicionantes que enfrentamos colocam-nos novas exigências, mas não nos impedem de realizar as nossas justas ambições.
Portugal será, essencialmente, o que quisermos que ele seja. Nem mais, nem menos; nem melhor, nem pior. É por isso que somos uma nação livre, soberana e independente.
Ser independente é ser responsável.
E a responsabilidade implica ter uma noção clara e exigente dos direitos, mas também dos deveres, colectivos e individuais, sem o que a exigência e as críticas não serão respeitadas como devem ser.
É, por isso, necessário fazer o balanço não só do que gostaríamos de ver feito mas também do modo como a acção de cada um pode contribuir para que o resultado colectivo nos contente.
Foi-se instalando na mentalidade colectiva a ideia de que o Estado é, para o bem e para o mal, a raiz e a solução de todos os nossos problemas. Daí nasce a relação nem sempre amadurecida e responsável que os Portugueses têm com o Estado.
Quando, por exemplo, nos alarmamos com o insucesso escolar dos nossos filhos, o impulso é atribuir todas as culpas ao sistema de ensino, aos responsáveis políticos, aos professores… Só raramente nos lembramos que a educação é uma tarefa da escola mas é também um dever da família, que não pode demitir-se do seu papel essencial na educação dos filhos e na transmissão dos valores que os devem guiar pela vida fora, como cidadãos e como pessoas completas e íntegras.
Queixamo-nos muitas vezes de que os serviços de saúde são insuficientes para dar resposta às necessidades da população com os padrões de qualidade que outros países já alcançaram.
Mas ainda não se valoriza suficientemente o forte contributo que podemos dar se os hábitos de consumo forem mais moderados, e se reduzirmos os níveis preocupantes de alcoolismo, de tabagismo ou de obesidade, que persistem mesmo entre as camadas mais jovens da população.
O acesso a mais bens materiais não significa mais qualidade de vida se não for acompanhado da adopção de hábitos saudáveis e de estilos de vida que previnam os efeitos nocivos que nenhum sistema de saúde pode resolver.
Temos que cuidar melhor da nossa saúde para que o sistema de saúde possa cuidar melhor de nós.
Quando olhamos indignados para as estatísticas da sinistralidade rodoviária, que nos envergonham se comparadas às dos restantes membros da União Europeia, exigimos do Estado estradas seguras, forças policiais bem equipadas e campanhas de prevenção.
Esquecemos que tudo isso jamais será suficiente se o comportamento dos condutores não for prudente e não tiver respeito pelas regras estabelecidas e pelos outros. Não tenho receio de o afirmar: a atitude dos Portugueses nas estradas é um exemplo do País que não devemos ser.
Envergonhamo-nos por persistirem, no Portugal do século XXI, situações gritantes de injustiça e pelo facto de a desigualdade na distribuição de rendimento ser a maior entre os países da União Europeia. Mas a indignação contra tal situação devia ser acompanhada pelo rigoroso cumprimento das obrigações fiscais e de responsabilidade solidária que cabem a cada um de nós.
Lamentamos ainda situações de degradação ambiental visíveis em muitas zonas do nosso País. Mas não seremos todos também responsáveis, por acção ou omissão, pela poluição que invade os rios, pelo lixo que suja as praias, pela destruição do nosso património histórico e paisagístico?
Nestes, como noutros exemplos, esquece-se a capacidade de acção individual e alguns dos mais importantes deveres de cidadania.
São gestos simples, que estão ao alcance de todos, e que podem melhorar muito aquilo de que hoje nos queixamos.
Como afirmei no meu discurso de tomada de posse, “todos somos responsáveis pelo nosso futuro colectivo”.
Portugueses
Acabámos de assinalar os trinta anos da Constituição da República. A nossa Lei Fundamental contempla um conjunto muito vasto e diversificado de direitos, seja no plano das liberdades e garantias seja no plano dos direitos económicos, sociais e culturais.
Temos que assumir que a concretização desses direitos e liberdades, nomeadamente dos direitos sociais, tem um custo.
E que o Estado só pode suportar esse custo se contar com o contributo e a iniciativa de todos e de cada um dos cidadãos.
O Estado somos nós.
É urgente interiorizar esta pedagogia republicana dos deveres cívicos. Se olharmos à nossa volta, encontraremos bons exemplos de como uma forte cultura cívica é um recurso insubstituível que, só por si, pode determinar a diferença no sucesso e no desenvolvimento dos países.
Olhemos, a este propósito, a diáspora portuguesa.
As comunidades da Diáspora construíram no estrangeiro o Portugal que aqui não encontraram.
Os emigrantes portugueses são o exemplo vivo do inconformismo e da necessidade de adaptação que nos deve estimular em tempo de incertezas e encruzilhadas.
Temos, além disso, o dever de acolher e integrar os que, no respeito das leis do País, nos procuram como nova fonte de esperança e oportunidade, os imigrantes que chegam de outros países dispostos a lutar por uma vida melhor.
Temos de pensar a República como uma comunidade de destino e de futuro, feita de cidadãos livres e responsáveis.
Temos de fazer da ética da responsabilidade uma marca integrante do espírito de todos os portugueses, sem a qual esforço, trabalho e riqueza serão desperdiçados.
Dirijo-me especialmente aos jovens, que já vivem com a noção do mundo global, que convivem e comunicam sem fronteiras, e que por isso têm conhecimento pleno de como é importante assumir e esperar dos outros uma cultura de direitos e deveres.
Nos jovens há um capital de esperança e um ímpeto generoso e exigente que não deve ser frustrado, antes estimulado e enaltecido, com bons exemplos em todos os sectores da vida nacional.
Neste Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, desafio os portugueses a pensar no País que queremos e na responsabilidade de cada um.
Todos queremos deixar às gerações futuras a herança de um país social, cultural e economicamente mais rico, um Portugal melhor.
A comemoração do passado, num dia como o 10 de Junho, só tem um sentido pleno se trouxer consigo a promessa de um futuro diferente.
Neste dia de Camões, desafio os Portugueses a responder com ambição às perguntas com que um outro poeta, Jorge de Sena, nos inquietou:
“Que Portugal se espera em Portugal?
Que gente há-de ainda erguer-se desta gente?”
Sei que podemos responder. Portugal será o que fizermos dele.
Disse.