Discurso do Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações, João Bénard da Costa, na Sessão Solene Comemorativa do Dia de Portugal
Porto, 10 de Junho de 2006
Nunca, diz-se, é palavra que um político nunca deve pronunciar. Nem nunca, nem sempre. Sempre discordei do conselho, quer para políticos quer para os que o não são, mas as razões dessa discordância não vem agora ao caso. Porque o que vem agora ao caso – e perdoe-se-me a imodéstia de referir a minha pessoa ao começar – é eu ter garantido, o ano passado, em Guimarães, que "pela oitava e última vez me cabia a honra de usar da palavra" no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, na qualidade de Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações, e, afinal, estar aqui, hoje, pela nona vez, no mesmo Dia e na mesma qualidade, dando o dito por não dito e parecendo prolongar no sempre um nunca pré-anunciado.
Mas o que eu nunca podia prever, findo o segundo mandato do Presidente que em 1998 me convidara para tão honroso cargo, era que o futuro Presidente – há um ano atrás ainda nem sequer formalmente candidato – me convidasse para continuar a exercer estas funções. A vida já me devia ter ensinado – mas eu sou muito distraído – que me propõem quase sempre aquilo com que não conto e me desprovem quase sempre daquilo com que conto. Mais uma vez assim sucedeu, com grande surpresa minha, que nunca pensei (e este nunca o digo como nunca) ocupar estas funções hoje e falar-vos agora daqui.
Por essa surpresa, Senhor Presidente, aceite o meu muito saudar, como se dizia noutros tempos, e naquele português de que se vai perdendo a forma e o fundo, mas que o Porto de Camilo e de Agustina nos lembra com acicate, encomendando-se tanto em suas boas lealdades como em seu peculiar vernáculo.
Eis, assim, explicadas, do meu lado, as razões que me levam, pela segunda vez, a discursar no Porto, num 10 de Junho, sendo até meu maior motivo de assombro reparar que, nesta tribuna, sou o único de 2001 a figurar em 2006. É certo que sou o único que, para aqui estar, apenas necessitou de um Despacho, pois todos os outros precisaram de bastante mais. Mas nem por isso a surpresa é menor. Se ma tivessem predito há cinco anos, jamais o acreditaria.
Cinco anos. Há cinco anos – lembram-se? – o Porto era Capital Europeia da Cultura e queria assinalá-lo com uma mudança radical do seu tecido urbano e sub-urbano, de que o Metro e a Casa da Música ficaram como sinais mais visíveis. Partilhava essa honra com Roterdão e, lendo a retórica da época, não faltou quem visse nessa germinação uma promessa de maior proximidade entre o pobre Portugal e a rica Holanda.
É certo que o ambiente já era incomparavelmente menos eufórico do que aquele que rodeara a Exposição Universal, em 1998. Relendo o meu discurso de então – refiro-me ao de 2001, e não ao de 1998 – já falava de depressão e de desânimo como sentimentos dominantes. Mas mal sabia – mal sabíamos quase todos – o que aí vinha e estou apenas a pensar no que aconteceu em Portugal. Nos finais desse mesmo ano, um Governo, que devia ter durado até 2003, pediu escusa ao Presidente da República, que não teve outro remédio senão convocar eleições antecipadas, que o próprio partido governamental lhe pedia. O deficit passou a ser o tema dominante das agendas políticas e dos ralhetes europeus para o aluno que, em novinho, tão bem comportado parecera. E aconteceram-nos dois governos que não conseguiram restituir aos portugueses o que por esses anos se passou a designar por auto-estima, já feia expressão se aplicada à esfera individual, feiíssima se aplicada a um povo que todos os dias canta levantar de novo o seu esplendor. Iniciou-se um daqueles ciclos depressivos em que a nossa história é tão fértil ou não estivesse o Dia de Portugal – ao menos lendariamente – associado ao Poeta que, ao morrer, julgou morrer com a Pátria.
Mas não morremos em 1580 – como tantos supuseram, mesmo que um desses tantos não fosse certamente Camões – nem morremos em várias outras ocasiões em que o fim da Pátria ressoou. De resto, ninguém, nem os mais pessimistas, sabe muito bem que fim será esse, já que as nações não se costumam evaporar dos mapas e, apesar de ser grande a nossa mania da perseguição, não se vê que inimigo do exterior, ou a soldo dele, nos queira ocupar ou absorver.
O excesso de catastrofismo, como o excesso de optimismo – e os portugueses são bons em qualquer deles – acabam por se equivaler nos resultados. Alguns, estão à vista desarmada. Prognósticos tremendistas ou tenebristas não parecem afectar aquela fatia da população portuguesa que "ainda tem um pedaço de pão e a manteiga para lhe barrar por cima", como dizia, dos patrões Maias, o Vilaça de Eça. Além do pão e da manteiga gozam ou gozarão, neste mesmo mês de Junho, de feriados e férias nas praias do sul, enquanto vão pagando as prestações dos vários automóveis da família, agitando bandeirinhas nas janelas, ou pedindo emprestado a Bancos, conforto ou desconforto de grande parte deles.
"Não há-de ser nada"; "há-de se dar um jeito"; são expressões inventadas por portugueses e para portugueses, e com elas nos convencemos que os amanhãs talvez não cantem, mas não hão de ser tão maus como no-los pintam.
Falando do Porto ou falando no Porto – neste momento, não recordo bem – Agustina escreveu um dia que o seu segredo era a resistência. "Resiste, esse é o segredo". Deu alguns exemplos: "resiste à demanda da civilização, ao método para desabrochar em novas denúncias do homem; resiste a ser igual ou desigual, resiste a pertencer ao século". Chama-lhe cidade "insolúvel, comunicativa e desordenada". Resistir, talvez seja o que mais podemos pedir e o que mais podemos esperar neste Dia de Portugal de 2006, no Porto. Foi Vitorino Nemésio quem escreveu que "uma ida ao Porto é sempre uma lição de portuguesismo, tanto mais rica quanto mais raramente lá se vai". Escreveu-o num texto em que evocou o modo como o Porto "se reservou o papel conservador da nossa energia gregária", nos nossos ciclos de expansão, para, depois, nos de retracção, assumir "a intensa direcção das reservas demográficas e económicas da parte nuclear do país". E acrescenta: "A arte, o etnográfico, alguns aspectos económicos, já são compulsados segundo a unidade histórica nortenha ou de pontos de vista sub-regionais que ela abrange; mas a hora do desenho objectivo desse troço primitivo e compacto da realidade portuguesa tarda ainda, e temos de ficar pela sugestão da ousadia".
Tardou no tempo histórico de Nemésio (1966, já lá vão quarenta anos!) mas a inteira ou a ousada sugestão do poeta insular, que, no Porto, se apaixonou por "um pouco de tudo e a paz por nada", será hoje muito menos sugestão e muito menos ousada do que há quatro décadas. A "capitalidade politica" estará em Lisboa, mas a "capitalidade nuclear" encontro-a no Porto.
Como o disse há cinco anos: amo o Porto, ao mesmo tempo como uma cidade em que me sinto sempre no estrangeiro ("cidade europeia" ao contrário da arabizante Lisboa) e como uma cidade onde encontro as raízes da minha cultura, no que ela tem de mais especificamente português. Ou seja, no que ela tem de secreto e desmedido, de universal e intraduzível, de tradicional e libertário, de conservador e anárquico.
Veja-se a imagem do Porto na nossa literatura e na nossa poesia, no nosso teatro ou no nosso cinema. E, ou ela nos surge como o espaço granítico de todas as brumas e de todas as raízes, ou, pelo contrário, no-la descrevem como a nossa cidade mais inglesa, e leia-se, por exemplo, Júlio Dinis ou Ruben A, Uma Família Inglesa ou O Mundo no Campo Alegre. É o mesmo Porto de Camilo, esse Porto que ficou sobretudo no imaginário lisboeta, "urbano e pardacento" com "a torre exclamativa dos Clérigos"? É, e é esse fundíssimo contraste que explica ter sido pelo Porto que Portugal mais se abriu à Europa – as rotas do Douro – e ter sido pelo Porto que mais resistiu a submeter-se a ela, na afirmação de uma singularidade que em nenhuma outra região do país foi tão radical.
Por isso, é bom vir ao Porto, quando mais precisamos de nos reencontrar connosco, nem que seja com as contradições de nós. Até agora permanece "indeferida" a memória desta cidade, para, de novo e pela última vez, citar Agustina. Talvez a possamos começar a deferir, recuperando-a para um país que seja, pelo menos, o que esta cidade sempre foi: um país que respeita e um país que se respeita. Um país, não um sítio.
Senhor Presidente da República: muito obrigado por me ter dado a palavra. Minhas Senhoras e Meus Senhores: muito obrigado por me terem escutado.