Discurso do Presidente da República no lançamento das Comemorações dos 200 anos das Linhas de Torres Vedras
Torres Vedras, 11 de Novembro de 2009

Senhor Ministro da Defesa Nacional,
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras,
Senhor Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas,
Senhor Comissário das Comemorações,
Senhoras e Senhores,

Assinala-se hoje o lançamento das Comemorações do Bicentenário das Linhas de Torres Vedras, uma obra ímpar de organização militar do terreno. Para nós, portugueses, estas Linhas são sobretudo o símbolo da vontade de resistir de um Povo. Prestamos, nesta ocasião, homenagem a esses nossos antepassados heróicos que aqui lutaram em defesa da Pátria.

No início do século XIX, a máquina de guerra napoleónica estendeu as suas forças até ao extremo ocidental do continente europeu. Provindo do centro da Europa, que então dominava, a sua longa marcha quedou-se aqui, nestas terras, apenas a uma jornada de atingir o seu objectivo final.

Que mistério foi este? Como conseguiu um pequeno país fazer parar o melhor dos exércitos quando este se encontrava a dois passos da vitória?

Os exércitos napoleónicos não conquistavam territórios, destruíam as forças oponentes. Estavam sempre em movimento até encontrar o momento e o local azados. Aí, e só aí, atacavam ferozmente, com a máxima concentração de homens e de poder de fogo.

Ora, em 1810, o invasor tornara claro que tinha um único objectivo: atingir Lisboa. Esta revelação permitiu ao comando do Exército português e do Exército inglês antecipar os movimentos do adversário e adequar a sua estratégia defensiva.

Pela primeira vez, o Exército francês enfrentava forças que, parecendo recusar o combate, afinal o atraíam ao ponto em que os defensores o queriam colocar.

Chegado às Linhas de Torres Vedras, o espanto do comando francês foi a prova de que a sua construção fora feita no mais absoluto segredo.

Milhares de homens e mulheres, escavando fossos e erigindo muralhas, transportando materiais e artilharia em carros de bois, pelas encostas mais íngremes, deram tudo o que tinham para edificar as defesas. Um trabalho prolongado, esforçado, organizado, eficiente. E feito com total discrição.

É considerado, por muitos especialistas, um dos segredos mais bem guardados da história militar. É notável, de facto, que se tenha podido confiar no silêncio de tantos milhares de pessoas.

E que o invasor não tenha conseguido comprar um único traidor que lhe vendesse a informação crucial. Assim se tornou possível a vitória.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Na cidade que deu nome a esta obra maior de um povo em armas, aproveito para trazer à memória a figura de um grande português.

Recordo um cartógrafo militar de primeira água, que foi vítima de muitas injustiças, e, porventura, da maior de todas: a do esquecimento.

José Maria das Neves Costa foi o oficial do Real Corpo de Engenheiros que procedeu ao levantamento cartográfico em que assentou a decisão, há precisamente duzentos anos, de edificar em tão curto espaço de tempo uma fortificação com aspecto tão imponente e dissuasor. Honremos a sua memória.

Incapaz de vencer o obstáculo, sendo-lhe impossível contorná-lo, não conseguindo forçar os aliados ao combate, vencido pelo tempo e pela usura das tropas, restou ao invasor a retirada.

Aqui se inverteu o sentido da Guerra Peninsular. Foi o princípio do fim da aventura napoleónica que pôs a Europa a ferro e fogo. A retirada terminaria em Waterloo, cinco anos depois.

O maior erro de Napoleão, no entanto, não teve a ver com tácticas ou com estratégias, mas com a verdadeira natureza do adversário que se lhe opunha.

Em Portugal, o grande general subestimou a força anímica de um povo. Decorria já a invasão e ainda ele proclamava que “… os ingleses são o único perigo.”

De tal modo que não contabilizava as unidades portuguesas e, por isso, assinalava uma clara desproporção a seu favor nas forças em presença e exigia uma vitória fácil.

Um simples soldado do exército francês, veterano de muitas batalhas e de todas as campanhas, deixou testemunho nas suas memórias do modo como os cálculos dos invasores foram reduzidos a nada na Península Ibérica por algo com que nunca tinham contado:

“Nas guerras que até então tínhamos feito acostumámo-nos a ver numa nação apenas as suas forças militares e a desprezar o espírito que anima os seus cidadãos.”

Foi o ânimo dos nossos antepassados que fez toda a diferença. O carácter e a vontade de todos os que se aprestaram a combater, uns guarnecendo as trincheiras, outros fustigando a retaguarda do invasor.

Incluindo todos aqueles que, oriundos das Beiras, do Ribatejo, da Alta Estremadura, abandonaram casas e terras, perdendo os haveres que não puderam transportar. Acolhidos atrás das Linhas, sofreram os horrores da fome, animados unicamente pela esperança de manter a liberdade.

Em homenagem a estes portugueses, temos o dever de cuidar da preservação deste património e de tudo fazer para guardar a memória de um povo que se levantou contra o invasor.

Saúdo a população de Torres Vedras e todos aqueles que se têm empenhado na tarefa de preservação das Linhas de Torres, desde a administração central e o Exército português, às autarquias envolvidas e às entidades da sociedade civil.

Felicito, em particular, a Câmara Municipal de Torres Vedras e, na pessoa do seu Comissário, Senhor D. Manuel Clemente, a Comissão Municipal para as Comemorações do Bicentenário das Linhas de Torres Vedras.

A vitória dos aliados neste terreno que pisamos veio inspirar aqueles europeus que não tinham resistido quando invadidos por uma força que lhes parecera avassaladora.

Com o nosso exemplo, renascia, para cada povo da Europa, a esperança de ser capaz de decidir o seu destino.

Julgam-se fortes aqueles que querem impor a sua vontade pela força dos números. Fortes são aqueles que conseguem enfrentar a vontade dos outros com a força da sua razão.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Aqui se derramou o suor e o sangue de muitos portugueses. Aqui se garantiu a independência de Portugal. Aqui se defendeu, com unhas e dentes, a nossa identidade e o nosso modo de ser contra aqueles que queriam forçar a nossa liberdade.

Muito mudou desde então. Mas, dando sentido ao suor e ao sangue derramados, os Portugueses tiveram sempre uma palavra a dizer no traçado do seu próprio caminho.

Estas comemorações bicentenárias cumprem um dever nacional de reconhecimento para com os heróis das Linhas de Torres Vedras. Aquilo que somos deve-se também a eles.

Celebremo-los como merecem.

Muito obrigado.

http://anibalcavacosilva.arquivo.presidencia.pt/comandantesupremo/?idc=304&idi=32799