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08.07.2010 02h16
08.07.2010 01h45
07.07.2010 08h34
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É bom estar aqui hoje usando a Língua Portuguesa, com a certeza de que todos me compreendem. Talvez isso bastasse para percebermos a importância da Lusofonia. Talvez nem precisasse de dizer muito mais. Ante o encanto de nos entendermos todos, não há grande coisa a acrescentar. Isto é muito. Mas não é tudo.
A expressão língua materna, segundo afirmam os especialistas, nasceu a partir do costume, da prática ancestral de serem as mães a educar os filhos recém-nascidos. A língua que aprendemos na infância é uma marca tão forte e perene como tudo aquilo que recebemos e damos como mães. Por muitas línguas que aprendamos na vida, nenhuma se substitui à nossa língua mãe.
E hoje quem vos fala é uma mulher que é mãe, avó e foi professora de Língua Portuguesa a sua vida inteira. Esta tripla condição de mulher, mãe e professora há-de enredar-se naquilo que vos quero dizer.
E disso não vos vou pedir desculpa, porque a nossa língua é talvez aquilo que somos de mais autêntico e profundo.
Mais do que materna, a língua é a mãe de tudo o que fazemos na vida. Aprendemo-la desde que nascemos, e até no próprio ventre materno já a ouvimos como música que nos embala através da voz da nossa mãe. Ela acompanhar-nos-á sempre, porque, tal como o amor, não há língua como a primeira.
Ao nascer, uma criança é um mundo de possibilidades. Todo o recém-nascido é uma promessa e, ao mesmo tempo, uma incógnita.
De nenhuma criança poderemos dizer o que virá a ser. Não sabemos como crescerá ou o que será no futuro, quando chegar à idade adulta.
A língua que lhe ensinamos é um caminho, uma rota que lhe vai marcar a vida. É mesmo, porventura, o legado mais certo que lhe iremos deixar. Pois, por muitas línguas que venha a falar, nunca falará nenhuma como aquela que lhe ensinarmos na infância.
Diz-se também que há línguas mortas e línguas vivas. A linguagem é um organismo dotado de existência própria, um ser que cresce e morre e, sobretudo, se enriquece no convívio com outras línguas, que absorve, transforma e adapta expressões de paragens alheias. Fazer seus outros modos de falar, sem perder a identidade própria, é prova de que uma língua é viva. A vitalidade de uma língua constrói-se em diálogo. A nós, que falamos uma língua universal, cabe-nos a enorme responsabilidade de mantermos viva a língua a que chamamos «mãe». É por ela e através dela que aqui, na Cidade da Praia, nos podemos tratar como irmãos. Há um dito português que afirma «é a falar que a gente se entende». Ora, ninguém se entende e percebe melhor do que aqueles que se alimentaram do seio da mesma língua.
Nós todos, que aqui estamos hoje, podemos dizer que em português nos entendemos.
A língua é uma casa, morada de várias moradas. Casa grande, diriam em certas regiões do Brasil, casa de engenho, capaz de albergar muita gente, milhões de pessoas que falam igual e diferente. A admirável riqueza de uma língua falada por milhões de seres humanos está também no facto de nos conseguirmos entender, apesar de cada um ter seguido o seu caminho. Não é igual o português que aqui falo e o português em que escrevem muitos poetas e prosadores da lusofonia. Mas vivemos na mesma casa.
É absolutamente diferente o sentimento que temos quando estamos num país estrangeiro onde se não fala a nossa língua. Quando nos encontramos em terras da Lusofonia, tudo nos parece familiar e próximo, possuímos a singular sensação de estarmos num lugar que é nosso, não o sendo; ou que, não sendo o nosso país de cidadania, é sempre a morada dos nossos afectos, a casa onde nos sentimos em casa.
Sei que este sentimento é partilhado por todas as casas da Lusofonia. Sempre que nos visitamos uns aos outros – Portugal, Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Guiné – nunca estamos verdadeiramente no estrangeiro, porque a língua comum é também a nossa pátria comum. Língua a que cada um, longe de casa, deu o seu jeito pessoal e único.
Nos muitos lugares em que se fala o português, a língua, porque é viva, ganhou vida em cada uma das culturas onde cresceu. Por isso, há expressões que temos dificuldade em apreender na plenitude do que significam, pois só as gentes que as dizem sentem o seu conteúdo vivido. Se não é fácil traduzirmos para outras línguas o sentido profundo da palavra «saudade», também não é fácil alcançarmos o significado inteiro da expressão «hora di bai», que na sua doce sonoridade evoca partidas e regressos, momentos de despedida e tempos de reencontro.
É comum dizer-se que a língua é veículo de comunicação, o que corresponde à verdade. Mas é também verdadeiro o facto de a língua ser ferramenta de pensamento. Pensamos verbalmente. Quando nos ocorre uma ideia, falamos interiormente connosco próprios.
No preciso momento em que me estais a ouvir, há palavras que estão nas vossas mentes. Palavras que são pensamentos. Daí a importância do culto da língua e do rigor das palavras. A riqueza vocabular e o respeito pelas regras da língua não aumentam apenas a fluidez da comunicação. Correspondem igualmente a uma maior densidade de pensamento, a uma mais profunda forma de encararmos o mundo e de o representarmos dentro de nós.
A língua em que falamos e escrevemos é a nossa estrutura mental.
Se falamos a mesma língua, se está viva a língua que falamos, é essencial que a saibamos valorizar.
Desde logo, porque a língua é memória, memória falada e dita através de palavras que se deixaram escritas à posteridade.
Comovemo-nos ao percorrer as linhas de um manuscrito antigo. Ao longo dos séculos, a grafia mudou, mas conseguimos ouvir nas palavras escritas as vozes daqueles que as escreveram. Entre as ruas da Cidade Velha, não muito longe daqui, ecoam ainda as palavras do Padre António Vieira. Passaram séculos, mas ainda o temos na Cidade Velha, porque connosco o trazemos nos escritos que nos legou, escritos na mesma língua em que vos falo, e que foram ditos na mesma língua que ouvimos nos mercados desta Ilha de Santiago, ao entardecer do Mindelo, nas praias da Boavista ou a bordo dos navios que circulam neste arquipélago.
Este é o supremo encanto da palavra: António Vieira por certo não imaginou que, passados tantos séculos, a língua de que se revelou mestre seria falada pela diáspora cabo-verdiana nas setes partidas do mundo.
Valorizar a língua é, acima de tudo, ensiná-la e aprendê-la na forma correcta. Sendo um caminho de palavras, veículo de diálogo mas também modo de pensamento, toda a língua possui a sua regra e o seu preceito. As regras da língua não são imutáveis, ao contrário do que sucede com as palavras que o cinzel sulcou nas pedras antigas de antigas civilizações. O respeito pelas regras da língua é essencial para que consigamos ter a liberdade de nos expressarmos, mantendo a identidade do que dizemos.
Temos modos de falar distintos, mas o segredo está em que essas diferenças não apagam a universalidade do que é legitimamente distinto.
Só é universal aquilo que conserva a sua identidade. Somos cúmplices de uma aventura colectiva, herdeiros da língua que Fernando Pessoa definiu como sua Pátria. Existe, sem dúvida, um patriotismo da Lusofonia. Devemos reforçar os laços que sedimentam tal patriotismo, promover o contacto dos jovens que anseiam por fazer crescer esta comunidade universal. Para valorizar a palavra, temos de passar das palavras aos actos.
Muito obrigada por me terem acompanhado nestas palavras, que foram ditas na língua das mulheres e mães, porque maternas são sempre as palavras quando verdadeiros são os sentimentos.
© 2010 Presidência da República Portuguesa