Teremos a consciência de quanto a Europa deve ao Tratado de Roma, assinado há cinquenta anos? Teremos a memória desperta para as lições desse admirável percurso da Europa que se ergueu sobre as ruínas da II Guerra Mundial?
Não é demais, nunca será demais, lembrar os fundamentos da integração europeia e os seus protagonistas. Porque perder a memória do passado pode hipotecar o futuro.
Ao génio visionário de Jean Monnet juntou-se a determinação e o talento de um punhado de europeus como Robert Schuman, Paul Henri Spaak, Joseph Beck, entre outros. Muito lhes devemos. Sabiam que a guerra se poderia repetir se não fosse construída uma nova solidariedade que, a um tempo, superasse os egoísmos nacionais e as tentações hegemónicas e congregasse os povos europeus em torno de valores e interesses comuns. Sabiam também que o progresso económico e social não seria alcançável no futuro apenas sustentado numa lógica nacional, impondo-se tirar partido da “escala europeia” e de todas as sinergias daí decorrentes.
Paz e desenvolvimento são, de facto, as motivações primaciais do movimento de construção europeia da segunda metade do século passado.
O fracasso do projecto da Comunidade Europeia de Defesa, chumbado na Assembleia Nacional de França em 1954, não travou a integração europeia como alguns então temeram. Seguiu-se por outro caminho. E, assim, no dia 25 de Março de 1957, foi o Tratado de Roma assinado pelos seis Estados fundadores. Que de um marco histórico se tratou ninguém tem dúvidas.
Portugal, que aderiu há mais de 20 anos, tem sido um parceiro estável, empenhado e solidário, que muito tem contribuído para o processo de integração europeia e muito tem dele beneficiado.
É no Tratado de Roma que encontramos o ADN da integração europeia. Continua a impressionar-nos a visão e o alcance estratégico desse verdadeiro código genético que, ainda hoje, é a matriz determinante da integração europeia. “Determinados a estabelecer os fundamentos de uma união cada vez mais estreita entre os povos europeus”: são estas as primeiras linhas do Tratado.
Enfatiza-se o racional da “acção comum” para eliminar “as barreiras que dividem a Europa”, visando o progresso económico e social. Garante-se o princípio da igualdade dos Estados. Preserva-se o valor da unidade na diversidade. Releva-se a solidariedade como fio condutor do “método comunitário”. Afirma-se a vontade de cooperação com outras regiões, nomeadamente do Sul. Adopta-se o gradualismo consistente como via pragmática para aprofundar a integração.
Numa declaração cheia de significado e plena de valor o Tratado de Roma afirma-se como instrumento para “consolidar, pela união dos seus recursos, a defesa da paz e da liberdade”.
Iniciou-se, então, o fim da Europa das barreiras, das divisões e dos afrontamentos nacionais que tantos custos e tantas vítimas causaram ao longo da História.
A União Económica e Monetária do Tratado de Maastricht tem as suas origens na União Aduaneira estabelecida em 1957, que já então visava “reforçar a unidade das economias” europeias. E o grande mercado interno, consagrado no Acto Único Europeu em 1986, tem a sua matriz de base no conceito de mercado comum definido em Roma há cinquenta anos. De Roma vem também a política de concorrência, uma das traves-mestras da integração económica. Tal como aí se inscreveram os objectivos de emprego e de adequada protecção social.
O alargamento também faz parte do código genético da integração europeia. No Tratado de Roma já os seis Estados signatários apelavam “aos outros povos da Europa”, que partilhavam os mesmos ideais, para se associarem aos seus esforços. Esse apelo não foi em vão e de seis Estados iniciais a União Europeia passou para os actuais vinte e sete, sendo que mais candidatos se perfilam. Mais uma prova do êxito da construção europeia. Teria sido possível a implosão do regime soviético e a unificação da Alemanha sem o sucesso da integração europeia? A adesão à União Europeia tem constituído uma formidável âncora de paz, estabilidade e progresso para todo o Continente Europeu.
Importa também não esquecer o sábio equilíbrio que presidiu à definição da arquitectura institucional. Assente na vontade soberana dos Estados membros, o Tratado de Roma definiu a Comissão Europeia como instituição supranacional, com o direito exclusivo de iniciativa e o dever de zelar pelo bom cumprimento das suas disposições. Cabe-lhe interpretar e defender o interesse comum, preservando a equidistância devida face aos interesses nacionais. Baseado numa adequada representação dos Estados, constituiu-se o Conselho como principal órgão legislativo. Ao Tribunal de Justiça incumbe assegurar a boa aplicação dos acordos e a bem fundada resolução de conflitos. E estabeleceu-se uma Assembleia, de facto percursora do Parlamento Europeu que lhe sucedeu.
Em época de desafios e de opções difíceis é recomendável rever as lições de Roma.
Em primeiro lugar, há que relevar a persistência, o pragmatismo e o sentido estratégico dos fundadores que souberam erigir o Tratado de Roma, superando o clima de crise que então se vivia.
Quantos momentos de crise foram vividos ao longo destes cinquenta anos! E, todavia, quase sempre, senão sempre, os esforços da integração superaram as clivagens, as divisões, os impasses. Lembro, por exemplo, que a União Económica e Monetária teve várias tentativas falhadas até ser consagrada pelo Tratado de Maastricht. E a livre circulação de pessoas, caída num impasse após o Acto Único Europeu, foi levada por diante com os Acordos de Schengen.
Em segundo lugar, Roma ensina-nos a importância crítica do valor da solidariedade no processo de construção europeia. Sem solidariedade a integração europeia pode implodir face às tensões que não deixariam de se produzir num quadro de desequilibrada repartição de custos e benefícios. É do Tratado de Roma o objectivo de “assegurar o desenvolvimento harmonioso pela redução de desigualdades entre as diversas regiões e do atraso das menos favorecidas”.
Em terceiro lugar, sublinhe-se, por um lado, o hábil equilíbrio de poderes entre as instituições comunitárias e, por outro, a eliminação de qualquer posição hegemónica por parte dos grandes Estados membros. Não se minimizaram os pequenos e médios Estados, antes se teceu um equilíbrio que garantiu o exercício de soberania partilhada nas áreas de integração europeia.
Em quarto lugar, a importância de saber tirar partido da “escala europeia” não só para beneficiar os cidadãos, mas também para reforçar o papel da Europa no mundo. E se isso já era evidente para os fundadores de há cinquenta anos, é ainda mais evidente nos nossos dias.
A integração europeia não se cristalizou no Tratado de Roma. Evoluiu, adaptou-se, aprofundou-se. Mas fê-lo sempre em coerência e fidelidade ao seu código genético, ou seja, aos grandes princípios e linhas de orientação do Tratado de Roma. O Acto Único Europeu e o Tratado de Maastricht, por exemplo, não fizeram tábua rasa do passado de integração europeia.
É, todavia, imperativo adaptar os desígnios e as políticas comuns aos tempos que são os nossos e aos desafios que são os de hoje. Tal como é imperativo reformar as instituições europeias para reforçar, ao mesmo tempo, a sua legitimidade democrática e a sua eficiência. A integração europeia não pode parar no tempo e transformar-se num projecto contemplativo dos sucessos do passado. Mas entendo que o aprofundamento da integração europeia estará condenado ao fracasso se ignorar ou desvirtuar os valores e os princípios que escoraram o Tratado de Roma.
O desafio do Tratado Constitucional, fracassado em dois referendos europeus, não obriga a recomeçar tudo de novo. A construção europeia tem um caminho percorrido com resultados reconhecidos. É uma construção sólida e com bons alicerces. As reformas da União Europeia não podem pôr em causa um admirável acervo laboriosamente construído nas últimas cinco décadas. É indispensável persistir na procura de caminhos que unam os europeus e os mobilizem para fazer face aos novos desafios e às novas ameaças, que vão da energia e das alterações climáticas à segurança internacional, num contexto de irreversível globalização.
A integração europeia continua a ser a melhor resposta da Europa aos desafios que enfrenta. E o que os cidadãos exigem aos líderes europeus é que saibam estar à altura dos fundadores do Tratado de Roma.
Aníbal Cavaco Silva