N’Os Lusíadas, a obra maior da literatura portuguesa, escreveu Camões:
Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo.
Referia-se o poeta ao fenómeno natural do Fogo de Santelmo, que os marinheiros avistavam a bordo das naus que tinham partido do estuário do Tejo, a poucos metros do local onde hoje nos encontramos.
O poema épico de Camões evidencia já a importância da visão como testemunho do maravilhoso. A autenticidade da narrativa é conferida pela observação direta das coisas, que são vistas, claramente vistas.
Ao humanismo renascentista não bastava a crença numa dimensão sobrenatural. O experimentalismo científico que então dava os primeiros passos exigia a observação, a visão das realidades terrenas, a sua comprovação empírica.
Creio que aquele trecho d’Os Lusíadas sintetiza, de uma forma extraordinária, o que hoje nos traz aqui: a importância da visão, o triunfo da ciência e, enfim, o poder evocativo dos mares no nosso passado comum, mas também no presente e no futuro.
Senhoras e Senhores,
É com o maior gosto que, uma vez mais, presido à cerimónia de entrega do Prémio Champalimaud de Visão.
Neste ano de 2015, o júri do Prémio decidiu distinguir o trabalho conjunto do Kilimanjaro Centre for Community Ophthalmology (KCCO), da SEVA Foundation e da SEVA Canadá.
Os premiados de hoje são um exemplo da aplicação de estratégias integradas, de trabalho conjunto na adaptação a modelos de organização locais de sucesso crescente e de sustentabilidade a longo prazo.
O lançamento do ambicioso plano global de ação “Visão 2020”, da iniciativa da Organização Mundial da Saúde e da Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira, foi o grande promotor desta prática de colaboração e de trabalho conjunto entre instituições de todo o mundo.
E foi-o com um objetivo comum: o da redução universal da cegueira evitável, prevenindo-a ou restaurando a visão perdida. O objetivo é claro e inquestionavelmente meritório: trata-se de garantir que um número cada vez maior de seres humanos possa dizer, como no poema de Camões, vi, claramente visto.
Trata-se de um trabalho humanitário admirável, resultante da aliança entre os programas de ação para as comunidades elaborados pela SEVA e a capacidade da sua aplicação, desenvolvimento e expansão pelo Centro Oftalmológico sediado em Moshi, na Tanzânia.
A conjugação de esforços entre as três instituições hoje premiadas traduziu-se na implementação e divulgação das boas práticas de organização da oferta de cuidados de saúde, no alargamento do treino multidisciplinar das equipas e na disseminação deste modelo de organização a diversos outros países da África austral e oriental, alguns deles com as mais altas taxas de cegueira do mundo.
Noventa por cento da população mundial com problemas de cegueira vive nos países em vias de desenvolvimento. Trata-se de uma situação dramática para milhões de pessoas em dezenas de países. Daí a relevância especial deste Prémio, o qual, à semelhança de outras edições anteriores, vem apoiar iniciativas levadas a cabo junto dos que mais precisam, os seres humanos dos países menos desenvolvidos, aqueles a quem já chamaram os povos silenciosos do mundo.
O programa “Visão 2020”, que apoia este Prémio, considera a cegueira evitável um problema global de saúde pública, pelo que lançou o desafio de assegurar que todos, nos diversos continentes, tenham acesso a serviços de reabilitação oftalmológica integrados nos respetivos serviços de saúde, através da implementação de planos nacionais, regionais ou locais.
Desde que foi lançado em 1999, este programa despertou um notável esforço internacional de mobilização de recursos financeiros, humanos e tecnológicos reforçando capacidades na oferta de cuidados, sobretudo em países em vias de desenvolvimento.
Os premiados de hoje concretizam a conjugação de vontades que a Organização Mundial da Saúde está a acompanhar através das suas várias estruturas regionais e que se traduz já numa evolução positiva dos indicadores de saúde, a qual é interpretada como otimista face à meta traçada para 2020.
Há nove anos que tenho a honra de presidir à cerimónia de entrega do Prémio Champalimaud de Visão. Entregamos hoje o maior galardão mundial atribuído a organizações que contribuem para a prevenção ou o tratamento global das doenças da visão.
Enquanto Presidente da República de Portugal, quero enaltecer, de forma muito calorosa, o contributo ímpar que, a partir de Portugal, estes Prémios têm dado para o combate à cegueira no mundo inteiro.
Felicito as três instituições premiadas: estou certo de que este Prémio trará um inestimável progresso, efetivo e sustentável, ao tratamento de milhões de pessoas.
Felicito igualmente o júri pelo rigoroso trabalho de seleção e pelo prestigiado saber que tem colocado ao serviço desta causa.
Perante mais uma iniciativa da Fundação Champalimaud quero saudar, de forma muito particular, a sua Presidente, a Senhora Dra. Leonor Beleza. Na sua pessoa, saúdo também, os cientistas, os investigadores, os clínicos e todas as equipas que trabalham, produzem e aplicam a ciência e o conhecimento para o bem e a qualidade de vida de todos nós.
Dou público testemunho do que vi, claramente visto: ao longo destes anos, a Dra. Leonor Beleza e a sua equipa têm feito frutificar, de forma extraordinária, o legado – e também a responsabilidade – que receberam de um português de exceção.
Esta Fundação tem sabido honrar a memória do seu fundador, demonstrando estar à altura do sonho visionário de António Champalimaud.
Saúdo, pois, todos os que souberam concretizar um sonho que ajudou – e ajuda – milhões de seres humanos em todo o mundo.
É com justificado orgulho que, como português e como Presidente da República, posso afirmar que, no futuro, a Fundação Champalimaud irá levar cada vez mais longe a sua ambiciosa missão.
Neste dia da entrega do prémio Champalimaud, um prémio que distingue causas humanitárias em todo o mundo, queria fazer um veemente apelo a que a Europa, face à tragédia que se abate sobre milhares de pessoas, se destaque, uma vez mais, pela defesa dos valores e os princípios da dignidade humana. Aos que buscam a Europa fugindo da guerra, Portugal deve manifestar a sua profunda solidariedade e, dentro das suas possibilidades, criar condições para o seu acolhimento, para que, com as suas famílias, possam recomeçar uma vida nova. Trata-se de um imperativo ético, que nos caracteriza como cidadãos da Europa e que devemos preservar em nome de um mundo melhor.
Muito obrigado.