Um mandato coerente
Este volume de intervenções que agora se publica refere-se ao último dos cinco anos do mandato que os Portugueses me confiaram em 22 de Janeiro de 2006, ano que coincidiu com as comemorações do Centenário da Implantação da República. Serve, à semelhança das anteriores edições, um propósito de prestação de contas, reforçando a transparência da actuação do Presidente proporcionada, de forma sistemática e quase em tempo real, através da página oficial da Presidência da República na Internet.
O respeito pela palavra dada e a coerência nas atitudes são fundamentais para que os cidadãos possam confiar nas instituições democráticas. Sobre o exercício das funções de Presidente da República e sobre as palavras que profere impende uma elevada responsabilidade. Como referi no discurso na Cerimónia Comemorativa do Centenário da Implantação da República, «é fundamental que a classe política, pela força do exemplo, dê aos Portugueses motivos para acreditarem na sua República».
Ao longo deste ano, tal como dos anteriores, honrei os compromissos assumidos perante o País, sendo coerente nas palavras e nas acções e sempre colocando em primeiro lugar o superior interesse nacional. Testemunham-‑no as intervenções reunidas neste quinto volume dos «Roteiros».
A crise económica e social
No decurso do último ano, Portugal foi confrontado com uma realidade que há muito se desenhava no horizonte e enfrenta hoje uma das mais complexas crises da sua História. Daí que, ao tomar posse para o meu segundo mandato, tenha concentrado a minha atenção nas linhas de orientação e nos rumos para a economia nacional que permitam responder às dificuldades do presente e encarar com esperança os desafios do futuro. E, como então afirmei, «para delinearmos o melhor caminho para atingirmos o futuro que ambicionamos temos de saber de onde partimos».
Foram sucessivos os alertas que, ao longo de todo o meu mandato, fui emitindo a propósito da difícil situação financeira do sector público, do grave desequilíbrio das nossas contas externas e do nível muito elevado do endividamento do País relativamente a entidades estrangeiras. A Mensagem que proferi no início de 2010 era muito clara quanto aos riscos de estarmos a caminhar para uma «situação explosiva». Foram exactamente essas as palavras que usei, palavras que o tempo veio mostrar que tinham fundamento e razão de ser.
A partir do segundo semestre de 2010, já ninguém podia negar que o País atravessava uma situação de grave crise económica e financeira, com profundos efeitos negativos no plano social. À medida que, em particular, se foram agudizando as dificuldades no acesso aos mercados e na obtenção de créditos externos a taxas razoáveis, aquilo que para alguns era já uma evidência, para a qual em devido tempo alertaram os Portugueses, foi finalmente reconhecido por todos, a começar pelos decisores políticos.
Procurei, ao longo de todo o meu mandato, ser um referencial de equilíbrio e estabilidade. Sempre no respeito pela esfera de acção política dos diversos intervenientes, procurei também promover activamente a formação de consensos em matérias de superior interesse nacional.
Logo no início do ano que passou, fiz notar que a difícil situação das nossas contas públicas lançava, no novo quadro parlamentar, um desafio de regime aos partidos representados no Parlamento. Os Portugueses compreenderiam mal que os diversos líderes políticos se não concentrassem na resolução dos problemas das pessoas, e, em particular, que não empenhassem o máximo do seu esforço na realização de entendimentos interpartidários que possibilitassem a indispensável definição de um plano credível de consolidação orçamental a médio prazo, a ser consubstanciado, desde logo, no horizonte dos Orçamentos do Estado para 2010 e para 2011.
Foi por isso que, no final do passado mês de Setembro, decidi receber todos os partidos políticos representados na Assembleia da República, tendo apelado a que desenvolvessem «todos os esforços para alcançar em torno do Orçamento do Estado para 2011 os entendimentos que considerem necessários para a realização dos superiores interesses nacionais».
Mais tarde, no final do mês de Outubro, reuni o Conselho de Estado, tendo como pontos da ordem de trabalhos o Orçamento do Estado para 2011 e a situação política. Na Declaração que proferi no final da reunião, reiterei o facto de a gravidade da situação financeira do País não se compadecer com atitudes que levassem à abertura de uma crise política – a qual, por razões constitucionais, só mais tarde poderia vir a ser resolvida, com grave deterioração, entretanto, das condições de vida dos cidadãos – e insisti na necessidade de um esforço adicional de entendimento entre o Governo e a oposição.
Um contrato de coesão nacional
Um Presidente da República não deve alimentar divisões. A responsabilidade primordial de um Presidente da República é a de unir os Portugueses, em vez de impor a sua visão do mundo a uma parcela do País. Não é da crispação, bem o sabemos, que nascem as soluções para os problemas. Daí a minha insistência na necessidade de um contrato de coesão nacional, transversal à sociedade portuguesa, e no apelo a uma cultura de diálogo e de responsabilidade, focada na resolução dos problemas concretos – e graves – do País.
A coesão nacional tem de ser também coesão social. Desde a primeira hora do meu mandato, tenho dado todo o apoio às instituições de solidariedade e aos grupos de voluntariado, tenho sublinhado a importância de dar voz àqueles que a não têm, de incluir os excluídos, de atender às necessidades básicas dos que mais precisam.
Constante tem sido, igualmente, a importância que, nesta perspectiva, venho conferindo à coesão geracional. Portugal tem de ser um País de justiça para todas as idades. Não podemos deixar que sejam os dois extremos da pirâmide etária, os mais velhos e os mais novos, a suportar os encargos sociais mais pesados das dificuldades do presente. E importa garantir que as novas gerações e as gerações futuras não sejam irremediavelmente afectadas nas suas expectativas por decisões que comportam efeitos negativos a médio ou longo prazo.
Foi esta a mensagem e o desafio que entendi deixar aos Portugueses nas Comemorações do Dia de Portugal, que se realizaram em Faro. Disse na altura: «A coesão nacional constitui um dos nossos bens mais preciosos.
A coesão nacional é, antes de mais, uma manifestação de vontades, a expressão do desejo de nos mantermos unidos, a capacidade de, em momentos difíceis, juntarmos esforços em torno daquilo que é verdadeiramente essencial.»
Nunca escondi a dimensão dos desafios que temos entre mãos, mas nem por isso deixei de combater, de forma realista, o espírito de descrença e de desânimo. O Presidente da República tem de ser um elemento gerador de confiança. Declarações impensadas, feitas na praça pública, retiram credibilidade àquele que tem de ser um moderador de conflitos, além de poderem criar sentimentos de insegurança ou alimentar tensões numa altura em que importa unir esforços. A voz do Presidente tem de ser uma voz serena e de verdade, que seja escutada pelos agentes políticos, mas também pelos agentes económicos e sociais e por toda a sociedade civil. A informação objectiva sobre a situação do País é um bem público, que beneficia os Portugueses no seu conjunto.
Linhas de rumo
O Presidente da República não governa nem legisla, mas pode apontar caminhos capazes de levar o País a aproveitar as suas potencialidades.
No discurso que proferi na Assembleia da República, na sessão comemorativa do 25 de Abril de 2010, voltei a dar particular realce a um dos temas que, desde o primeiro momento, me tenho preocupado em trazer à atenção dos Portugueses – o da nossa relação com o mar. A ausência, entre nós, de um pólo desenvolvido de indústrias marítimas é, de facto, tanto mais surpreendente quanto Portugal apresenta um conjunto de vantagens comparativas extremamente relevantes à escala europeia.
Desenvolvi, ao longo do ano, um conjunto de iniciativas destinadas a sublinhar o valor estratégico do mar e a mobilizar empresários, trabalhadores, autarcas e cientistas para a sua exploração económica. Dei o meu patrocínio à realização de um Congresso dedicado aos Portos e Transportes Marítimos, apoiei activamente a Conferência «Portugal e o Mar, a nossa aposta no Século XXI», visitei os Estaleiros da Lisnave e o Porto de Aveiro, contactei de perto com comunidades costeiras em que a exploração do mar é um dos pilares do desenvolvimento local. Defendi, em todas as ocasiões, e irei continuar a fazê-lo, que o mar deve tornar-se uma verdadeira prioridade da política nacional. Não será com certeza uma panaceia para todos os nossos problemas, mas, se soubermos aproveitar as fortes potencialidades que a nossa vasta linha de costa e a maior zona económica exclusiva da União Europeia nos oferecem, o mar será um activo económico da maior importância para a criação de riqueza e um desígnio nacional capaz de unir os Portugueses e de projectar Portugal no Mundo.
Portugal também pode fazer melhor e criar novas oportunidades noutras áreas. Dei, também no discurso que proferi no dia 25 de Abril, o exemplo das indústrias criativas e do Porto, que, à imagem do que sucede com outras cidades europeias, como Barcelona e Berlim, poderá tirar ainda maior proveito das indústrias ligadas à criatividade e ao conhecimento, transformando-se num pólo aglutinador de um conjunto de actividades que vão desde a arquitectura moderna e a preservação do património histórico e cultural, passando pela moda e pelo design, até ao teatro, ao cinema e às novas tecnologias de informação e comunicação.
Ao longo das muitas visitas que realizei por todo o território nacional e dos Roteiros, em que continuei a acompanhar de perto o trabalho de muitos Portugueses, dei a conhecer mais bons exemplos que podem ser seguidos. Nas mais diversas áreas, autarquias, empresas e instituições estão a desenvolver com assinalável sucesso projectos e boas práticas que podem e devem ser replicados em benefício do País. Foi o que pude constatar nas jornadas do Roteiro das Comunidades Locais Inovadoras, em que conheci exemplos de inovação em sectores como a economia do mar, o turismo,
o design industrial, e, mesmo, na área social, que nos dão fortes motivos de esperança. Tal como também ficou evidenciado no Roteiro para a Juventude, em que mais duas jornadas, realizadas em 2010, permitiram observar a excelência de muitos projectos criativos e inovadores que estão a ser postos em prática por jovens empreendedores, inclusive em sectores tradicionais como a agricultura.
Como tenho vindo a referir desde o início do meu mandato, em 2006, é essencial que Portugal produza bens com acrescido valor incorporado, capazes de ter sucesso em mercados de exportação e de substituir produtos importados. Só abrindo novos caminhos para que tal aconteça é que poderemos reduzir o endividamento externo e criar novos empregos de forma sustentada.
Portugal no Mundo
A representação da República Portuguesa e o Comando Supremo das Forças Armas conferem ao Chefe de Estado importantes responsabilidades na área das relações internacionais. Ao longo do último ano do meu primeiro mandato como Presidente da República, continuei a nortear a minha acção neste domínio pelo objectivo de projectar e promover os interesses políticos, económicos e culturais de Portugal. Esta acção foi sempre pautada pelo cuidado em assegurar uma articulação com os demais órgãos de soberania, em particular com o Governo, na defesa dos superiores interesses nacionais.
As Visitas de Estado à República Checa e a Angola, no decurso de 2010, constituíram um exemplo de como, no domínio económico, o Presidente da República tem apoiado as empresas portuguesas, incentivando a diversificação de mercados de exportação e promovendo uma maior integração internacional.
O acompanhamento da evolução da situação económica e financeira internacional, e, em particular, da resposta da União Europeia, traduziu-se em encontros regulares com várias entidades e personalidades com responsabilidades neste domínio, designadamente o Presidente da Comissão Europeia e o Presidente do Parlamento Europeu. Este foi também o ano em que se assinalaram os 25 anos da assinatura do Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias, um marco na nossa História. Recordei, nessa data, o que, num balanço extremamente positivo, significou para o nosso País a integração nas Comunidades Europeias, sublinhando que a integração europeia não é a causa das dificuldades, antes representa a resposta aos problemas: fora da Europa unida, Portugal enfrentaria dificuldades bem maiores e teria menos capacidade para lhes responder. No actual tempo de crise, uma crise que desafia os próprios fundamentos da integração europeia, pesa, contudo, uma grande responsabilidade sobre os líderes nacionais e da União Europeia. Como tenho afirmado em várias ocasiões, se não defendermos o euro, que continua a ser um instrumento decisivo para a Europa enfrentar o mundo global, revigorando, nomeadamente, a União Económica, a sobrevivência do projecto europeu pode estar em causa.
No plano das relações internacionais, o último ano deste meu mandato ficou ainda marcado pela visita de quatro dias de Sua Santidade o Papa Bento XVI a Portugal, bem como pelas visitas do Presidente dos Estados Unidos da América, do Presidente da República Popular da China e do Presidente da República Federal da Alemanha ao nosso País.
No âmbito multilateral, a realização da Cimeira da NATO em Lisboa e a eleição de Portugal como membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas dignificaram e contribuíram para afirmar o nome de Portugal no Mundo.
No domínio cultural, a prioridade conferida à projecção internacional da língua portuguesa continuou a marcar a acção do Presidente da República, designadamente nas Visitas de Estado a Cabo Verde e a Angola, nos encontros com os Presidentes de Moçambique e do Brasil em Portugal e na participação, em Luanda, na VIII Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP, que aprovou a Declaração de Luanda e adoptou o Plano de Acção para a Promoção, Difusão e Projecção da Língua Portuguesa.
Cinco anos com os Portugueses
Tratou-se, como acima referi, de um último ano de mandato coerente com os compromissos assumidos perante os Portugueses e com o trabalho desenvolvido nos anos anteriores. O rigor e a isenção que caracterizaram o meu mandato são testemunhos da credibilidade e da lealdade com que exerci as exigentes funções que me foram confiadas.
Nas eleições de 23 de Janeiro de 2011, os Portugueses honraram-me novamente com a sua escolha. Sabem que poderão continuar a contar com o meu trabalho e com o meu contributo para que Portugal seja um país mais justo, desenvolvido e credível na cena internacional. Faço-o com convicção e com esperança, pois tenho a certeza que, apesar das dificuldades que o País atravessa, há fortes motivos para acreditarmos no empenho e nas capacidades dos Portugueses.
Aníbal Cavaco Silva
Março 2011