Discurso do ex-Presidente da República, General António Ramalho Eanes, na Cerimónia Comemorativa do 37º Aniversário do 25 de Abril
Palácio de Belém, 25 de Abril de 2011

Poder-se-á perguntar, com aparente pertinência e justificada razão se, agora, com Portugal a viver horas amargas de crise, angústia e incerteza, importaria comemorar Abril.

Na verdade, importará fazê-lo, neste tempo em que os medos reemergiram no nosso quotidiano, em que o regresso da fome, que grassa um pouco por todo o País, acutiladamente nos surpreende e contende, em que obrigados somos a dobrar a cerviz perante os ditames estrangeiros, em que se duvida que haja fundada esperança em melhores dias?

Creio que, apesar de tudo, importará comemorar Abril.

E importará fazê-lo para homenagem prestar aos militares de Abril que, com a sua abnegada acção, restituíram aos portugueses a liberdade, a sua própria liberdade individual e a sua liberdade enquanto povo soberano.
E para homenagear, também, as personalidades e organizações civis que ao longo de décadas, no Estado Novo, se bateram pela justiça e equidade.

Importará fazê-lo para nos lembrarmos todos, mas, em especial, para lembrar aos mais novos, que sempre viveram em liberdade, que esta mesma liberdade, que deveria ser para o Homem como o ar que se respira, não é, infelizmente, assim, como a História sobejamente no-lo demonstra.
A liberdade é, sim e sempre, fruto da empenhada inteligência, da vontade e acção paciente e clarividente do homem e das suas organizações. E a Democracia, que é a forma e o fim da sociedade moderna, não é nunca uma aquisição definitiva.

Importará fazê-lo, ainda, porque comemorar Abril pode, e deve, constituir um momento de estímulo à reflexão colectiva sobre os antecedentes que inevitabilizaram Abril e sobre as consequências que se lhe seguiram.
Procedimento politicamente virtuoso, este, porque, como a história dos povos no-lo demonstra e ensina, só as sociedades capazes de uma reflexão filosófica sistemática sobre a sua realidade, histórica e presente, são capazes de reformas oportunas e ajustadas à modernização económica e ao desenvolvimento social, indispensáveis ao progresso e unidade das sociedades civis.

Pode pois, assim, Abril contribuir:

- Para bem identificarmos os erros que nos arrastaram para a dramática situação actual.

- Para bem percebermos a forte incidência e os nefastos efeitos que a crise financeira mundial teve em Portugal, que tão dependente do exterior é.

- Para bem entendermos como essa crise potenciou e visibilizou a nossa própria e quase endémica crise; crise que confirma “que os bloqueios existentes no passado não foram superados, que os desafios criados não foram vencidos”.

Na verdade, o nosso sistema económico - em que as despesas não são cobertas pela receita, mas sim, por elas e por um endividamento crescente, e em que não há aumento suficiente da actividade económica, o que agrava o fluxo da dívida - não poderia deixar de nos conduzir, mais cedo ou mais tarde, a uma crise de grande intensidade, para a qual, aliás, advertidos fomos, por muitas credenciadas vozes, a que atenção não prestámos todos – Poder Político em especial, mas Sociedade Civil também.

Pode Abril, ainda, contribuir para, bem e justamente, identificarmos os responsáveis pela situação crísica actual.

Capazes não foram os Partidos Políticos de responder, cabalmente, aos quatro objectivos estruturais da acção política, que poderiam desmantelar vícios ancestrais e outros próprios de uma sociedade partidária, e que são: desburocratizar, desideologizar excessos, desclientizar (ou seja, despartidarizar), e descentralizar. E, ao proceder assim, potenciado terão, os Partidos Políticos, um Estado exageradamente pesado, quase omnipresente na sociedade.

Ao procederem assim não cuidaram de responder à crise que pendia sobre o País e que ameaçava, de há muito, tornar-se insustentável.

Os responsáveis em primeira linha são os políticos e, nestes, como disse o Presidente da República Cavaco Silva, “as direcções partidárias [que] foram incapazes de interpretar e corrigir uma tendência longa de acumulação de desequilíbrio, ocultando os sinais de agravamento (...)”.

Mas, responsáveis são, em segunda linha (em menor grau, é certo), os cidadãos e a sua Sociedade Civil porque:

- Não cuidaram de desenvolver uma colaboração exigente com o Estado.

- Não participaram suficientemente na discussão dos projectos de reforma dos subsistemas sociais (educação, saúde e justiça) e não se comprometeram com as reformas que a governação política pretendeu realizar.

Habituados, ainda, alguns, à nossa tão tradicional passividade cívica, motivados, outros, os mais jovens em especial, por um individualismo em progressão (aliás, positivo também, pois é “uma exigência de mais liberdade”).

Os portugueses, obviamente com excepções, sistemática e generalizadamente não responderam bem à sua responsabilidade social. A decadência que ameaça, sobretudo as gerações dos nossos filhos e netos, também é da nossa responsabilidade. Se outras provas não houvesse, e há, aliás já referidas, provas suficientes seriam:

- O endividamento das famílias, quantas vezes não para responder a necessidades mas tão-só para satisfazer desejos.

- A escolha dos governos, aos quais não cuidaram de exigir responsabilidades. E sabe-se que, como disse Fernando Pessoa, “só há uma coisa que faz sentir ao governante que não pode abusar: é a presença sensível, quase corpórea, de uma opinião pública directa, imediata, espontânea (...), que todos os povos sãos possuem”. Assim, ao não exigirem, também, uma informação que contribuísse, decisivamente, para a impermeabilização à demagogia política, lugar público se concedeu à propaganda política que encanta, engana e seduz, em detrimento da verdade que estimula a responsabilidade. A gravidade corruptiva da demagogia política entende-se bem quando se recorda as palavras de Cícero ao dizer que não se corrompe um homem sério com favores, mas possível é fazê-lo com palavras.

É evidente que, ao comemorar Abril, justo não seria esquecer-se o muito que se fez, como injusto seria deixar de atribuir aos diversos governos a acção de mérito que nisso tiveram.

Em pouco mais de três décadas, aprendemos a viver em democracia e a aceitar a tolerância e compreensão do seu indispensável e diversificado pluralismo.

Na verdade, melhorias significativas introduzimos na nossa vida colectiva, em termos de rendimento, padrões de consumo, de acesso a equipamentos e serviços.

É de sublinhar que o fizemos num exigente e difícil contexto de convívio, cooperação e competição com o espaço e as situações transnacionais:

- Integraram-se, económica e socialmente, mais de meio milhão de portugueses, que retornaram das ex-colónias, e que nestas tudo haviam deixado, excepto a indómita vontade de, com esperança e fundado trabalho, voltarem a ter, e a proporcionar aos seus familiares, não um destino que faz de futuro, mas um futuro que faz de destino.

- Institucionalizou-se, com sucesso, o poder regional nos Açores e na Madeira, e o municipalismo no País.

- Estabeleceu-se uma saudável e proveitosa cooperação com os Estados de língua portuguesa.

- Verificou-se um crescimento nos campos económico, político, científico, cultural e, também, social.

- Procedeu-se à libertação socialmente afirmativa, sobretudo da mulher.

- Ganhou a Sociedade Civil personalização e acrescido valor operativo com o associativismo livre.

- Aumentou, em muito, o nível de educação, de informação, de formação profissional e, mesmo, de cosmopolitismo na sociedade portuguesa.

- Progressivamente evolutiva foi a reestruturação do nosso sistema produtivo, com a modernização do tecido empresarial e a reconstrução do sistema bancário, este com inegável qualidade, mesmo a nível internacional.

E justo é, também, acrescentar que muitas foram as razões que obstaculizaram a acção e eficácia dos governos, de que se apontam, a título meramente exemplificativo, as seguintes:

- Não puderam os governos contar com uma sociedade unida e forte, uma classe média com dimensão e peso crítico suficientes, ousada, confiante e mobilizadora.

- Tiveram os governos, durante alguns anos, a sua acção fortemente espartilhada pela Constituição da República.

- Trabalho árduo tiveram os governos para transmutar um Estado que se quisera colectivista, e que muito colectivizara, num Estado de mercado.

- Problemas graves, de governabilidade, tiveram os Executivos nacionais, pois escassas foram as vezes em que as eleições geraram maiorias monopartidárias e, consequentemente, governos de maioria estável e coerente.

- Raras não foram as vezes em que o esgotamento iminente de divisas colocou os governos sob enorme pressão e os levou a vencer incontáveis dificuldades para conseguir empréstimos, ou para esses empréstimos obter o «beneplácito» do Fundo Monetário Internacional.
Lembro, em 1983, o dramatismo da crise, social mesmo, com salários em atraso e fome, situação que, aliás, suscitou muitas intervenção da Sociedade Civil, entre elas, a justa e ousada intervenção, quase ultimato à própria sociedade e ao governo de D. Manuel Martins, então Bispo de Setúbal.

- Assistiram os governos, certamente com preocupação, ao decréscimo da natalidade, ao envelhecimento tendencialmente maioritário da população e às suas consequências nefastas, pelo menos para equilibrar o sistema de Segurança Social assente no princípio da solidariedade intergeracional.

- Não conseguiram os governos, embora com frequência mostrassem vontade de fazê-lo, percorrer, até ao final, a via difícil das reformas, assim contribuindo, também, para o descontrolo da despesa pública.

Apesar de todos estes obstáculos, alguns apenas entre muitos outros, o País deve aos seus governos realizações e avanços significativos no aspecto social, económico, cultural, e até, embora menos, político.

No entanto, tudo o que se fez não foi suficiente.

Verdade é, também, que surpreendidos com o comportamento da economia mundial em 2001 e com o trauma financeiro mundial de 2008, capazes não fomos de encontrar respostas políticas, económicas e financeiras suficientes.

Na verdade, alheios nos mantivemos à preanunciada insustentabilidade económico-financeira, repetidamente vaticinada, sobretudo por dois défices críticos: o orçamental e o das contas externas. Surdos nos mantivemos a todos os avisos, apesar da sua sistematicamente crescente sonoridade.

Assim nos deixámos arrastar para a crise actual, a de “prisioneiros da dívida”, como
já nos chamaram. Dependentes nos encontramos de ditames estrangeiros que em causa põem o funcionamento do Poder Político e da própria Sociedade Civil e afectam a cidadania.

A crise está em Portugal, e em Portugal vai permanecer, e os portugueses vai castigar durante alguns anos. Há, pois, que olhá-la bem, conhecê-la nas suas causas e, também, necessariamente, perspectivar as suas inevitáveis consequências, procurando nelas as oportunidades que contém (probabilidades lhes chamou Edgar Morin) e que, colectivamente perseguidas, com vontade e determinação colectivas também, nos podem permitir reencontrar o futuro que desejamos.

A crise – a crise política, a crise social, a crise cultural – está aqui, no nosso quotidiano.

Desnudada será, seguramente, em breve e só então se conhecerá bem a sua configuração. Só então se saberá que medidas o FMI e as instâncias europeias nos impõem, quais as suas múltiplas consequências para a economia, para a sociedade, para o exercício do poder político, para a nossa soberania. Só então poderemos bem ajuizar como e quando a crise irá afectar o «padrão» do nosso comportamento e o dos nossos políticos.

Perante este vórtice crísico, que atinge os alicerces do regime e faz perigar o futuro colectivo, que revela a perversão do funcionamento dos partidos políticos que nos têm representado, uma só atitude podem adoptar: responderem com empenhada responsabilidade social, reconvertendo em desenvolvimento o processo de decadência que ameaça o porvir do País e a vida das novas gerações.

Lembrar nos devemos, como disse o Padre Manuel Antunes, que deve ser “nos momentos (...) das grandes crises que um País busca a sua própria identidade e medita sobre o seu próprio destino, de modo a definir o rumo e os contornos da construção do futuro”.

Devemos lembrar-nos que o momento é grave para “a definição e redefinição do nosso futuro”. E sendo assim, grave, bem grave, estimulante e decisivo pode e deve ser.

Se queremos recuperar o nosso lugar no mundo e a prosperidade para nós, nossos filhos e netos, temos de combater, com coragem, trabalho e sacrifício, as causas e causadores reais – políticos, económicos e financeiros – da nossa realidade.

Importa não perder tempo, nenhum tempo. Importa não perder oportunidades, nenhuma oportunidade.

Assim, para a negociação com o FMI e a União Europeia, deveríamos concentrar todos os nossos esforços na definição de uma estratégia comum defensora do interesse nacional. Definida essa estratégia, desenvolvê-la liderantemente junto dos nossos interlocutores, em concentrada coordenação de esforços políticos, partidários e sociais.

Depois, indispensável será fazer uma campanha eleitoral que respeite os portugueses, com competência política, com capacidade política, com convicções. Mas, sobretudo, com verdade, com inteira verdade, com um mínimo de slogans e um mínimo de demagogia.

E, depois das eleições, um governo de amplo espectro político-partidário e social, aberto aos valores da Sociedade Civil que desenhe, estabeleça e consensualize, o mais possível, um grande propósito nacional, popularmente mobilizador, e que, com o Presidente da República – que é quem, no País, mais informação possui e mais conhecimentos internacionais contabiliza – estabeleça uma sadia e proveitosa interacção estratégico-institucional que lhe permita o exercício de uma Presidência activa, como prometeu, e como espera o Povo português.

Não esqueçamos, como foi dito já, que, na vida dos povos, crise “não implica, necessariamente, decadência. Implica, isso sim, deslocação do seu centro de gravidade (...), de crenças, de hábitos, de formas e de estilos de vida (...) para um espaço incerto, através de uma viagem incerta (...). Semelhante deslocação pode mesmo conduzir ao colapso de toda uma tradição, mas pode constituir também o ponto de partida de uma grande e até completa, ou quase completa, renovação” (1).

A nós, e só a nós – Estado, sistema político, Sociedade Civil e mercado; enfim, partidos políticos e cidadãos – incumbe a acção e a responsabilidade de enfrentar e vencer esse desafio ou de, perante ele, sucumbir, por falta de vontade e engenho.
Nas nossas mãos está a possibilidade de transformar a ameaça em realização e esperança.

Convictamente creio, olhando a nossa história, que o desafio com que nos defrontamos, apesar da sua dimensão e complexidade, e da exiguidade dos nossos recursos actuais, pode ser vencido, pois, como disse, um dos nossos maiores Miguel Torga:

“Somos nós que fazemos o destino” (2).

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(1) ANTUNES, Manuel – Obra Completa. p. 153
(2) TORGA, Miguel – "Vasco da Gama". In Poemas Ibéricos