Quando, há pouco menos de um ano, propus aos Portugueses um compromisso cívico para a inclusão social, fi-lo na consciência de um outro Portugal que não beneficiava da atenção e das prioridades da agenda política e mediática.
Era um Portugal um pouco esquecido, quase sempre silenciado, que só era notícia pelas piores razões. Não era um Portugal distante. Vivíamos com ele lado a lado, passávamos por ele ignorando resignadamente a sua existência e os seus problemas.
Por isso falei aos Portugueses, no dia 25 de Abril, de um Portugal a duas velocidades, de contrastes sociais muito marcados, em que as imagens de progresso e modernidade conviviam paredes meias com as do atraso e da exclusão. Um dos indicadores reveladores deste dualismo é o da desigualdade na repartição do rendimento.
Todos sabemos que enfrentamos um problema da sociedade portuguesa com raízes profundas, um problema que não se resolve só com boas intenções nem numa perspectiva de curto prazo.
Sabemos que, sem crescimento económico, dificilmente poderemos atenuar as chagas sociais que ainda persistem. Sabemos também que, se não conseguirmos avançar rápida e sustentadamente na qualificação dos portugueses, todos os esforços serão insuficientes.
Por isso, restam-nos duas atitudes: ou nos resignamos, ou nos mobilizamos para, com os recursos que temos ao nosso alcance, anteciparmos um combate que a todos diz respeito.
Sabia que o tema da inclusão social não era um desafio fácil, mas era um combate urgente.
Sabia também que este era um campo propício ao discurso do pessimismo, à denúncia da miséria material e moral, à comiseração pública dos nossos males.
Seria fácil dirigir para o Estado o apelo sentido de todas as soluções. Afinal, de há muito nos habituámos a responsabilizar o Estado pela origem de todos os males e a exigir dele que seja a fonte de todos os remédios.
Mas foi na resposta dos Portugueses que em primeiro lugar confiei e foi aos Portugueses que pedi esse compromisso cívico para a inclusão social, como expressão da sua responsabilidade, do seu empenho e do seu espírito solidário.
As quatro jornadas do Roteiro para a Inclusão que realizei permitiram-me reencontrar um enorme potencial de experiência, vontade e competência, prontos a serem mobilizados para o objectivo de maior coesão social.
Comecei precisamente pelas regiões mais pobres do interior, onde os meios mais escasseiam, onde as dificuldades são mais sentidas e onde as perspectivas de desenvolvimento são mais sombrias. Condicionadas pelo envelhecimento acentuado das suas populações, pela degradação do seu tecido produtivo e pelo risco de desertificação do seu território, estas regiões enfrentam a maior das ameaças: o desaparecimento enquanto comunidades.
São regiões que precisam urgentemente de reorientar a sua base produtiva, valorizar os limitados activos humanos e materiais de que ainda dispõem e acautelar o bem-estar e a dignidade dos que, resistindo, se viram excluídos dos benefícios do progresso.
Encontrei experiências, como as do Centro Social de Montes Altos ou a Sociedade Filarmónica de Fratel, onde a iniciativa dos cidadãos conseguiu contrariar o destino que há muito parecia estar traçado. Foi simples o segredo do sucesso: não se resignaram! E, com o apoio das suas autarquias e do governo, conseguiram transformar cada problema numa nova oportunidade. Empreenderam, criaram riqueza, multiplicaram os postos de trabalho e devolveram a esperança e a confiança às suas comunidades.
Estou convencido de que se conseguirmos replicar estas experiências em outras aldeias e vilas do interior, daremos um passo no desenvolvimento social do nosso País. É preciso trabalhar de forma organizada, reunindo e diversificando contributos, actuando em rede e aprofundando a cooperação entre instituições.
Onde a iniciativa particular escasseia, ganha maior relevo o papel desempenhado pelas autarquias. Tive oportunidade de constatar quanto é árdua a sua tarefa, especialmente nas regiões mais periféricas. Mas também pude comprovar a disponibilidade dos nossos autarcas em assumir novas competências e novas responsabilidades, nomeadamente na área social e da educação, bem como o seu empenho no relançamento da base produtiva dos seus Concelhos.
Passada que foi a fase mais entusiástica da construção de infra-estruturas, é, de facto, tempo de abrirmos uma nova página na história dos municípios portugueses: a do desenvolvimento social, do reforço da actividade económica, da promoção da competitividade, da sustentabilidade do bem-estar e da qualidade de vida das suas populações.
Isso requer, por um lado uma inequívoca vontade descentralizadora e, por outro, um maior sentido de cooperação entre as autarquias. Não podemos continuar a remeter para o Governo Central o que poderia, com maior eficácia e resposta mais pronta, ser uma competência das comunidades locais. Não podemos continuar a multiplicar equipamentos, quando o bom senso nos aconselha a saber partilhá-los.
A descentralização para os Municípios de novas competências, especialmente no domínio social e da educação, tem, no entanto, de ser acompanhada por uma nova cultura de intervenção, em que as Autarquias sejam mobilizadoras de recursos locais, potenciadoras da iniciativa dos cidadãos e das organizações não governamentais e coordenadoras das estratégias de desenvolvimento social.
Pude constatar, nos vários Municípios que visitei, o potencial que representam as redes sociais e os conselhos locais de acção social como espaços de afirmação das suas comunidades, em torno de objectivos estratégicos de desenvolvimento social.
Tenho uma grande confiança no contributo que os cidadãos e as suas associações têm vindo a dar para a causa da inclusão social e uma certeza ainda maior no papel que o futuro lhes reserva.
Desvalorizámos por muito tempo esse papel, confundindo responsabilidade social com caridade, participação cívica com protagonismo, voluntariado com assistencialismo.
Tenho orgulho nesse vasto movimento do voluntariado de milhares de mulheres e homens que representam, com o seu trabalho e a sua dedicação, os alicerces de uma cultura cívica que se impõe afirmar e valorizar. Seria difícil imaginar o que poderia ser a realidade social do nosso país sem o inestimável contributo do voluntariado.
O mesmo poderemos dizer dos milhares de organizações cívicas, muitas delas representadas nesta Conferência, a quem eu desejo manifestar publico reconhecimento pelo trabalho que têm vindo a desenvolver em prol da inclusão social.
Nas quatro jornadas do Roteiro, a minha atenção esteve focada na diversidade de grupos sociais vulneráveis: das crianças aos jovens, dos idosos aos desempregados, dos cidadãos com deficiência aos sem abrigo, da prostituição às vítimas de violência doméstica, das mulheres grávidas aos imigrantes, dos pobres a tantos outros grupos marginalizados.
Testemunhei casos de boas práticas e exemplos de sucesso, mas também recebi relatos de dificuldades, limitações em acudir a graves situações sociais. Em todas as instituições constatei a inegável boa vontade e dedicação dos que nela trabalham.
Os desafios colocados pelas novas dinâmicas sociais exigem melhorias na organização e na gestão dos recursos afectos a este tipo de instituições. Tenho conhecimento de alguns voluntários que se disponibilizaram para trabalhar, mas que desistiram por falta de um planeamento das actividades apto a acolher o seu contributo.
Por outro lado, sendo já consideráveis os recursos financeiros afectos às instituições de solidariedade, estas não podem deixar de concretizar o princípio da regular e rigorosa prestação de contas perante os organismos públicos e perante as instituições doadoras, que certamente desejam saber onde e como foi aplicado o seu dinheiro.
Foi neste contexto que me interessei pelo trabalho de associações como a Entrajuda, que se vocacionou para a capacitação das instituições de solidariedade, através da prestação voluntária de serviços de consultadoria.
Uma boa gestão dos recursos permite qualificar os serviços prestados e fazê-los chegar a um maior número de pessoas carenciadas. O combate ao desperdício encontra na experiência do Banco Alimentar Contra a Fome um bom exemplo, não só de altruísmo, mas principalmente de organização, de capacidade de transformar problemas em oportunidades, de aplicar à economia da dádiva e do voluntariado critérios de eficiência e de boa gestão cujo resultado se traduz em melhor serviço para um número cada vez maior de beneficiários.
Hoje, a economia social tem uma dimensão e um dinamismo que não seriam imagináveis há quinze ou vinte anos atrás. As organizações de solidariedade têm vindo a aprender e a adaptar-se às novas exigências. Algumas delas encontraram soluções extremamente inovadoras cujos resultados me apraz registar.
É o caso das organizações empreendedoras que se libertaram progressivamente da dependência exclusiva do subsídio público e que se abalançaram a criar riqueza e, assim, a ganhar maior autonomia e maior capacidade de resposta às exigências da inclusão social.
Permitam-me que cite, a título de exemplo, duas instituições que tive oportunidade de visitar: a Associação para o Desenvolvimento e Formação Profissional de Miranda do Corvo e a ARCIL, localizada no concelho vizinho da Lousã. Ambas ousaram transformar instituições de acolhimento em plataformas de inserção profissional, ora proporcionando formação, ora criando empresas de inserção. Aliaram, assim, a sua vocação de acolhimento à capacidade de inclusão através da criação de riqueza.
Fiquei extremamente sensibilizado ao ver dezenas de pessoas com deficiência a trabalharem nessas empresas, a valorizarem as suas competências profissionais e a contribuírem para que outros com mais dificuldades possam beneficiar do produto do seu trabalho. Este é um exemplo a seguir: tão importante como dar um subsídio ou um outro contributo financeiro, é dar uma oportunidade para que as pessoas com deficiência possam recuperar o seu estatuto de plena cidadania e de dignidade.
O exemplo das pessoas com deficiência poderá ser extensivo a outros grupos sociais em situação de exclusão ou de pobreza extrema. Aos jovens em situação de reinserção social, a desempregados de longa duração, a beneficiários do rendimento social de inserção, aos sem abrigo, às prostitutas. O que poderão eles representar, se lhes dermos uma oportunidade!
Criar oportunidades e combater a resignação, fazer sentir que o contributo dessas pessoas é indispensável ao País e às comunidades, fazê-los participar nesse esforço de criar riqueza e bem-estar, são objectivos que estão ao nosso alcance e que não podemos desprezar.
Num primeiro balanço deste Roteiro para a Inclusão, ficam mais duas preocupações que gostaria de partilhar convosco.
A primeira prende-se com uma das causas mais decisivas destas situações de pobreza e de exclusão: o baixo nível de instrução e de qualificação de uma parte significativa das pessoas que protagonizam estes casos.
A escola tem sido e vai continuar a ser o mais importante instrumento de inclusão social, a oportunidade decisiva de que os jovens dispõem para contrariar o determinismo social e romper com o défice de qualificação das gerações anteriores. É pela escola que conquistamos o futuro, é na escola que construímos os alicerces de uma sociedade mais coesa e mais aberta ao mundo e ao conhecimento.
Por isso me preocupam os milhares de crianças e jovens que todos os anos abandonam o nosso sistema de ensino sem que disponham das competências indispensáveis a uma boa integração no mercado de trabalho. A entrada precoce no mundo do trabalho sem qualquer qualificação profissional é uma ilusão que se paga muito caro.
Preocupam-me também os comportamentos de risco, cada vez mais precoces, sem que se encontrem os instrumentos mais adequados à sua prevenção. Prevenir continua a ser mais urgente do que remediar e todo o investimento que se possa fazer neste domínio não será, decerto, um mau investimento.
Temos todos de fazer um esforço no sentido de aumentar as expectativas e as metas de escolarização das novas gerações. Temos de ser mais exigentes e, ao mesmo tempo, mais ambiciosos quando falamos do futuro das nossas crianças e dos nossos jovens.
Por isso, foi com muito interesse que assisti à iniciativa de um vasto grupo de empresários portugueses que se juntaram, no propósito de ajudar as famílias e as escolas a superar este défice de qualificação. O projecto de intervenção que construíram pode ser um contributo decisivo para que, com trabalho sistemático, capacidade de cooperação e muita persistência, possamos ver alguns milhares de jovens a reencontrar o sentido da escola e a construir trajectos de sucesso para as suas vidas.
Mas é bom que não esqueçamos que estas iniciativas dos empresários, das escolas, das instituições públicas e privadas, dos cidadãos em geral, por mais bem intencionadas que sejam e por melhores resultados que obtenham, não dispensam o papel decisivo da família. Sem ela, sem a sua função de socialização e de entreajuda, dificilmente os esforços de inclusão poderão ter sucesso.
Muitos dos casos de pobreza, de isolamento e marginalização dos idosos, de abandono e maus-tratos a crianças, de insucesso escolar e de comportamentos de risco, encontram na disfuncionalidade familiar a causa principal das situações de exclusão.
Julgo que é tempo de abandonarmos a atitude desculpabilizante a que nos habituámos e de questionarmos cada vez mais a responsabilidade dos pais para com as crianças e jovens e as responsabilidades dos filhos para com os seus ascendentes idosos. O primeiro pilar da solidariedade deve assentar, precisamente, na família. Sem esse esforço de base, ficaremos sempre aquém do ideal de coesão social que ambicionamos.
A segunda preocupação que desejaria partilhar convosco prende-se com a dimensão humanista deste combate pela inclusão. Não se trata só de entendermos esse combate como uma expressão de altruísmo e filantropia. Há uma dimensão superior do problema que nos deve orientar: a da defesa e valorização da dignidade da pessoa humana.
Em 33 anos de democracia, o nosso país consolidou o princípio do respeito e defesa dos direitos fundamentais. Mas não nos podemos contentar com a expressão formal desses direitos. Importa destacar a sua dimensão moral e a necessária associação às responsabilidades de cada cidadão para com a sociedade de que faz parte. Preocupa-me menos um eventual excesso de direitos do que o efectivo défice de deveres.
Nos quatro Roteiros já realizados, pude, como já referi, recensear boas práticas e, ao mesmo tempo, identificar os principais problemas dos grupos sociais mais vulneráveis:
as comunidades do interior que definham, os idosos isolados e dominados pela solidão, as crianças abandonadas e mal tratadas, as vítimas da violência doméstica, os imigrantes excluídos pela clandestinidade, as mulheres objecto de tráfico humano, as pessoas com deficiência a quem é negada uma oportunidade.
A todos quis deixar uma palavra de solidariedade e um sinal de esperança.
E a todos aqueles que, dia após dia, concretizam essa esperança, quero também expressar o mais profundo reconhecimento pelo seu trabalho, pela sua dedicação e manifestar-lhes a confiança inabalável de que, com o exemplo do seu empenhamento cívico, vamos construir uma sociedade mais justa e um Portugal melhor.