Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro-Ministro
Senhoras e Senhores Deputados
Minhas Senhoras e meus Senhores
Há exactamente trinta e dois anos, Portugal marcou encontro com o futuro. Esse futuro é hoje o nosso presente. As efemérides são sempre memória do encontro da história com o calendário. E porque as efemérides se repetem, mas a história não, desse reencontro anual decorre o risco de celebrar a mera repetição do dia e de perder cada vez mais o sentido de abertura à história que marcou a nossa memória colectiva.
Uma forma tentada ao longo dos anos para que esta cerimónia de homenagem, a 32ª, o seja menos à data e mais à história que nela se encerra, foi a de fazer dela um momento de reflexão sobre o nosso tempo.
De facto, nenhum outro dia – tirando o 10 de Junho – é mais apropriado a que o tomemos como uma encruzilhada entre o que foi e o que há-de vir – entre o ontem e o amanhã.
Nesta linha de orientação, eu podia aproveitar esta minha primeira vinda à Assembleia da República para participar numa cerimónia comemorativa do 25 de Abril para sublinhar quanto Portugal mudou nos últimos 32 anos. O vasto leque de direitos e liberdades que o sistema democrático consolidou, os progressos realizados nos mais variados domínios, a participação do País na União Europeia, a sua afirmação no concerto das nações e muitas outras realizações que fazem parte do activo da Nação Portuguesa.
Num outro quadrante, podia justificar-se, nesta data fundadora do regime democrático, voltar ao desafio da melhoria da qualidade e credibilidade do nosso sistema político. Tive oportunidade, nesta mesma casa, aquando da minha tomada de posse, de sublinhar a responsabilidade que impende sobre a classe política, nesse esforço de melhorar a nossa democracia e de reforçar o prestígio das instituições da República e dos seus titulares.
De facto, a comemoração do 25 de Abril seria uma ocasião propícia para reflectir sobre o que desejamos do nosso sistema político, o que esperamos do papel e do funcionamento dos partidos, o que é exigível do comportamento dos eleitos e demais agentes políticos, o que deve ser feito para que os cidadãos ganhem uma nova confiança e respeito pela actividade política e para que a democracia se revitalize e suscite na juventude portuguesa maior motivação e entusiasmo.
Pareceu-me, no entanto, mais útil, perante os legítimos representantes dos outros órgãos de soberania e a atenção da opinião pública, lançar um olhar sobre a nossa sociedade. Confrontá-la com sonhos que marcaram aqueles dias de Abril, mas que a realidade dos nossos dias não só não valida como em vários aspectos nos interpela. Quero referir-me, em particular, ao sonho de justiça social, da construção de uma sociedade mais justa e equilibrada, em que os benefícios do desenvolvimento contemplassem todos.
Trinta e dois anos após a revolução, o Portugal desta encruzilhada entre o passado e o futuro continua a ser um país fortemente marcado pelo dualismo do seu desenvolvimento.
É inegável o progresso registado em alguns sectores de actividade, a capacidade competitiva de muitas empresas, a excelência de alguns centros de investigação e inovação, a qualidade de serviço de muitas instituições. Mas não é menos inegável que essas experiências de vanguarda não conseguem impregnar todo o tecido económico e social, coexistindo os nichos de modernidade com expressões de indisfarçável arcaísmo social e cultural.
Profundas disparidades revelam-se na leitura do território. É cada vez maior o fosso entre as regiões marcadas por uma ruralidade periférica e as regiões mais urbanizadas. Mas, dentro destas, ressaltam as que conseguiram manter uma dimensão humana, proporcionando satisfação e bem estar aos que nelas habitam, em contraste com as que se tornaram autênticas chagas urbanísticas, produto da desorganização e da irresponsabilidade, condenando os seus habitantes a um mau viver resignado, sem qualidade e sem horizontes.
A crise do mundo rural não é de hoje. Arrasta-se há décadas, entre ciclos de resistência e de abandono. A vasta faixa do interior do país representa actualmente apenas 15% da população residente.
Muitas políticas foram adoptadas, mas nenhuma conseguiu estancar a fuga das gentes, ora para os centros urbanos do litoral ora para destinos mais longínquos, numa diáspora que teima em persistir.
Iludimo-nos pela presença deste ou daquele equipamento social, fruto do voluntarismo do poder local e dos homens bons que não abandonaram as suas terras, mas tardamos a encontrar um rumo de desenvolvimento sustentável do interior do País que potencie os parcos recursos existentes, que combata a tendência para o despovoamento e que atraia novos recursos materiais e humanos.
No quadro geral de adormecimento de muitas pequenas vilas e aldeias do interior, apraz-nos registar os sinais de esperança que aqui e ali vamos detectando. Portugal precisa de olhar para esses sinais, identificar as boas práticas que os sustentam, reconhecer o esforço que os agentes económicos, sociais e políticos vêm desenvolvendo e, a partir daí, traçar um caminho para que todos se sintam responsáveis e mobilizados para a acção. Há que vencer os obstáculos que nos têm impedido de enfrentar com sucesso a dupla exclusão do envelhecimento e da pobreza que atinge as comunidades do interior de Portugal.
Mas a mais marcante das disparidades que emerge deste Portugal a duas velocidades é a que resulta das desigualdades sociais. O sonho de um País livre e democrático é indissociável da ambição de uma sociedade mais desenvolvida e com mais justiça social.
Julgo poder expressar o sentimento geral ao dizer que muito progredimos na modernização da economia e na afirmação de novos estilos de vida, mas ficámos muito aquém na concretização dessa ambição de uma sociedade com maior justiça social.
O nosso País é, no quadro da União Europeia, o que apresenta maior desigualdade de distribuição de rendimentos. E é também aquele em que as formas de pobreza são mais persistentes. São características estruturais em que pesam o atraso na qualificação dos recursos humanos, a fragilidade das nossas classes médias, a má qualidade do emprego e os baixos níveis salariais em vastos sectores da nossa economia.
É entre a população mais idosa que encontramos as mais preocupantes situações de exclusão. O risco de pobreza persistente, que é relativamente elevado em Portugal, aumenta substancialmente no caso dos idosos.
O esforço que o Estado tem vindo a realizar para atenuar os efeitos deste quadro social tem de ser continuado. Não é moralmente legítimo pedir mais sacrifícios a quem viveu uma vida inteira de privação.
Desagregadas as estruturas familiares de apoio, pelas transformações sociais ocorridas nas décadas recentes, ficaram muitos dos reformados de ontem confinados às pensões do regime não contributivo que lhes não conseguem assegurar uma existência condigna.
E a exclusão – a dimensão de não pertença a que demasiados dos nossos concidadãos se vêem remetidos – é tão intolerável que, por contraste, têm de ser reduzidas à sua devida proporção as controvérsias geradas a propósito de pequenos aperfeiçoamentos dos nossos direitos. Falo dos direitos dos que não são excluídos e das controvérsias em que demasiadas vezes a discussão política se esgota e a atenção da opinião pública se exaure.
Esse é um peso que temos de ter presente na nossa consciência colectiva – mas também na consciência de cada um. O que de mais nobre e mais perene a História deste dia nos deixou, e que queremos legar às novas gerações, é a ambição de um País mais livre, mas também de uma sociedade mais justa.
Ao evocar esses dias de sonho e de esperança, lembro-me sempre daquele cartaz em que uma criança colocava um cravo no cano de uma espingarda. A carga simbólica desse cartaz é iniludível e vale a pena questionarmos: como cresceu aquela criança? Como crescem os milhares de crianças portuguesas? Será que estamos a tratar bem as novas gerações?
Preocupam-me os casos de crianças vítimas de negligência e de maus-tratos físicos e psicológicos, que regularmente são objecto das notícias dos órgãos de comunicação social. Reparo no número de processos instaurados pelas instituições vocacionadas para a sua protecção. Ouço o testemunho do cidadão anónimo ou do técnico que lida diariamente com estes casos e não posso deixar de reconhecer que essas mesmas crianças constituem o elo mais fraco dessa cadeia social que alimenta a exclusão. Na sua origem vamos encontrar, invariavelmente, a desestruturação familiar, os baixíssimos níveis de escolaridade dos pais e, de forma mais destacada, situações de dependência, com especial relevo para o alcoolismo.
É nesse mesmo quadro social que encontramos outro dos sinais preocupantes: o da violência doméstica, nomeadamente a que atinge maioritariamente a mulher. Não vale a pena esconder essa realidade silenciada que por vezes escapa à atenção das instituições. Trata-se, antes de mais, de um problema de dignidade humana para o qual não pode haver tolerância nem resignação.
Todos nós acompanhamos com preocupação estes sintomas. Sabemos que os efeitos da crise económica tendem a potenciar esses sinais, nomeadamente através do desemprego de homens e mulheres que, pelo seu nível de escolaridade e pela sua idade avançada, enfrentam dificuldades acrescidas na procura de um novo posto de trabalho. É nestas situações que o risco de exclusão social aumenta.
Para que esse risco possa ser atenuado não chega exigir mais medidas ou mais dinheiro. Concretizar essa ambição de justiça social, que não tem de ser remetida para o plano das utopias, passa por cada um de nós. Todos somos responsáveis, todos temos que assumir a quota-parte de responsabilidade social que nos cabe como cidadãos. Assumir como desígnio colectivo a protecção dos que vão resvalando, lenta e invisivelmente, para a margem de uma sociedade que se quer competitiva e dinâmica, mas também justa e inclusiva.
Temos de romper com o conformismo e o comodismo de relegar para o Estado a única solução do problema.
Temos de conseguir enaltecer, através de uma nova atitude cívica, o exemplo de milhares de cidadãos que, através do voluntariado e da participação em instituições de solidariedade social, encontram um sentido para esse desígnio.
Mas temos também a obrigação de reconhecer que a melhoria da justiça social, o combate à pobreza e à exclusão exigem que o País volte a ganhar a batalha do investimento, do crescimento económico, da criação de riqueza, sem o que o sonho continuará adiado.
Deveremos ter em conta a preocupação que o último Conselho Europeu enunciou ao chamar a atenção, e bem, para a interdependência que existe entre crescimento económico, competitividade, criação de emprego, protecção e inclusão social.
Senhor Presidente
Senhoras e Senhores Deputados
Não quero limitar-me ao diagnóstico. Quero apelar a uma intervenção mais ampla e mais coerente naquilo que, mais do que uma soma de dramas individuais, é – e deve ser – um peso na nossa consciência colectiva.
Quero propor um compromisso cívico, um compromisso para a inclusão social.
Um compromisso que envolva não só as forças políticas, mas que congregue as instituições nacionais, as autarquias, as organizações da sociedade civil, dos sindicatos às associações cívicas e às instituições de solidariedade. Um compromisso em torno de um conjunto de princípios e objectivos que nos orientem na acção colectiva, tendo por alvo os grupos sociais mais vulneráveis.
Estou convencido de que, em relação a este objectivo da inclusão social – tão central à dignidade da pessoa humana - é possível identificar os problemas mais graves e substituir o eterno combate ideológico por uma ordenação de prioridades, metas e acções, em que todos se possam rever e participar.
A elaboração do próximo Plano de Acção Nacional para a Inclusão pode ser aproveitada para uma mobilização geral, uma verdadeira campanha em prol da inclusão social. Um plano que consiga superar o tradicional enunciado de medidas, definindo uma estratégia coerente para um futuro mais promissor.
Esse será um passo para concretizar essa ambição de construirmos uma sociedade mais desenvolvida e ao mesmo tempo com maior justiça social.
Senhor Presidente
Senhoras e Senhores Deputados
Para aqueles que o viveram, comemorar o 25 de Abril significa reavivar uma recordação preciosa, património da nossa memória e marco do nosso passado colectivo.
Mas significa, também, mantermos presente o sentido que lhe está associado, o sonho e a ambição sem os quais poderia não passar de mais uma data ou de uma sequência fortuita de acontecimentos isolados.
Comemoramos hoje o 25 de Abril.
O 25 de Abril de 1974, quando um povo, sob o impulso de um punhado de militares, tomou nas suas mãos o seu próprio destino.
Mas também o 25 de Abril de 1975, quando os portugueses, em eleições livres e democráticas, disseram, com clareza, o que queriam e o que não queriam para Portugal.
E ainda o 25 de Abril de 1976, data em que entrou em vigor a Constituição da República Portuguesa.
São estas três datas hoje assinaladas que conferem sentido de futuro e de modernidade à nossa democracia.
Esses são os marcos de um passado comum de que nos orgulhamos e que, ao celebrarmos, não nos dispensa de ter sempre presente a advertência do poeta Ruy Belo:
“Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro”
É, seguramente, aos gestores do momento que cabe decidir os caminhos, mas é onde esses caminhos nos levam que lhes hão-de dar, ou não, o reconhecimento das novas gerações.
Fomos capazes de concretizar o sonho de um Portugal livre e mais próspero, mas estamos longe de podermos realizar a aspiração de maior justiça social.
Os Portugueses esperam dos políticos, que livre e democraticamente elegeram, que estejam à altura dessa exigência, que se empenhem em dar uma nova esperança aos mais desfavorecidos da nossa sociedade, que cooperem no sentido de mais facilmente poderem superar as dificuldades e naturais divergências ideológicas.
Se o conseguirmos, seremos dignos do reconhecimento de uma memória futura. É essa a minha ambição.