Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
Excelência,
Tendo recebido para promulgação como lei o Decreto nº 150/X da Assembleia da República, que aprova o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, decidi, nos termos da alínea b) do artigo 134º e do artigo 136º da Constituição da República Portuguesa, não promulgar aquele diploma, com os seguintes fundamentos:
1. O diploma em apreço vem substituir o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado, aprovado pelo Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, o qual vigorou cerca de quatro décadas.
2. O novo regime, aprovado por unanimidade na Assembleia da República no culminar de um longo processo legislativo, introduz uma autêntica mudança de paradigma no quadro da responsabilidade extracontratual do Estado, que é profundamente remodelada num sentido claramente ampliador da responsabilidade das entidades públicas, nomeadamente pelo exercício de funções administrativas, jurisdicionais, políticas e legislativas.
3. Importa, por isso, que um diploma desta natureza contenha soluções normativas claras e transparentes do ponto de vista técnico-jurídico e, sobretudo, acolha regras e princípios cujo alcance haja sido devidamente ponderado e amadurecido, quer do ponto de vista conceptual, quer do ponto de vista das suas possibilidades de concretização e de todas as suas consequências, maxime no plano financeiro, atendendo ao contexto específico do actual nível de desenvolvimento do País, no confronto com outros Estados europeus.
4. De facto, uma alteração desta magnitude implica, naturalmente, um acréscimo significativo das despesas do Estado, em montantes que não é possível quantificar ou prever, e irá ter, por certo, um impacto muito profundo ao nível do funcionamento dos tribunais e dos serviços públicos em geral.
5. Assim, em ordem a uma adequada defesa dos superiores interesses públicos, e sem questionar, de forma alguma, a oportunidade da introdução de um novo modelo de responsabilidade civil extracontratual do Estado, considero que será da maior conveniência que os Deputados à Assembleia da República reponderem a repercussão das soluções constantes do diploma.
Importa, na verdade, não esquecer que a responsabilidade do Estado é suportada, ao fim e ao cabo, pelos contribuintes e que o respectivo accionamento exige sempre a intervenção dos tribunais. Ora, várias soluções do diploma, não só são de molde a produzirem consequências financeiras cuja razoabilidade em termos de esforço fiscal é questionável, como são potencialmente geradoras de uma tal sobrecarga sobre o aparelho judiciário que, provavelmente, se revelará desproporcionada.
Assim, sem que se pretenda debater em profundidade aspectos particulares do diploma, considero relevante fazer menção a algumas soluções nele consagradas, relativamente às quais julgo ser pertinente uma reponderação.
6. No que concerne à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função administrativa, a obrigatoriedade do exercício do direito de regresso (artigo 6º) dos titulares de órgãos, funcionários e agentes, em caso de dolo ou de culpa grave, pela prática ou omissão ilícitas de um acto determinante de indemnização, implicará o desencadear sistemático de processos de averiguação sobre o eventual dolo ou grau de culpa.
Resulta daqui que, sempre que o Estado for processado por acção ou omissão ilícitas, no exercício da função administrativa, o funcionário ou titular de órgão ver-se-á envolvido no respectivo processo judicial, com todos os encargos e ónus daí decorrentes. Assim o determina o nº 4 do artigo 8º, ao dispor que o apuramento de grau de culpa se faz no processo de determinação de indemnização e que «a respectiva acção judicial prossegue nos próprios autos, entre a pessoa colectiva de direito público e o próprio funcionário, para apuramento do grau de culpa deste e, em função disso, do eventual direito de regresso por parte daquela».
Ora, os actos em causa podem corresponder a vultuosos interesses violados, sem que o funcionário ou dirigente possa, de alguma forma, eximir-se à sua participação na decisão, sob pena de violar os seus deveres, sendo que não há qualquer controlo sobre a proporcionalidade entre os interesses que o funcionário representa – os interesses do Estado – e a sua capacidade financeira para ressarcir os particulares lesados. Ainda que se venha a demonstrar não ter agido com dolo ou culpa grave, sempre terá que ser demandado obrigatoriamente, suportando os custos da defesa e a incerteza da decisão. Recorde-se, a este propósito, que os interesses dos particulares já se encontram devidamente protegidos pela resposta solidária a que o Estado está vinculado.
Além disso, a assunção de cargos de responsabilidade pode ser seriamente dificultada, se as pessoas tiverem plena consciência dos riscos que correm em caso de decisão contestável, como terão necessariamente que ter e ser especialmente esclarecidas sobre esse aspecto, não sendo de excluir que os responsáveis administrativos procurem evitar a todo o custo tomar decisões contrárias aos interesses manifestados pelos particulares, pondo assim em risco a imparcialidade devida e a salvaguarda do interesse público.
7. O conceito de responsabilidade por funcionamento anormal dos serviços, que é caracterizado através do recurso à noção de «padrões médios de resultado» (artigo 7º, nº 4), pode implicar, no limite, que a circunstância de um serviço não ter alcançado um «resultado médio» possa ser encarado como sinónimo de «funcionamento anormal». Ora, não pode deixar de se questionar o uso de um critério de «mediania de resultado» para aferição de uma realidade mais grave – a anormalidade do funcionamento do serviço.
O realismo inerente à aplicação deste acto legislativo aconselharia, por outro lado, que a definição do conceito de “funcionamento anormal do serviço” integrasse igualmente como padrão os meios disponíveis pela Administração Pública.
8. No contexto da responsabilidade por danos causados no exercício da função jurisdicional, o diploma em apreço consagra (artigo13º) um princípio geral de responsabilidade do Estado por erro judiciário − realidade que, em bom rigor, não deve ser confundida com a da revogação de uma decisão judicial por uma instância superior. Ora, a previsão de responsabilidade por erro judiciário é feita de um modo de tal forma abrangente que poderá conduzir a essa confusão, com consequências difíceis de prever a todos os níveis, incluindo o da salvaguarda do princípio da independência dos tribunais, entendido este na sua dimensão da liberdade de julgamento.
Suscita-se, ainda a este propósito, uma segunda ordem de considerações, a qual tem a ver com a determinação do carácter «manifesto» da inconstitucionalidade ou da ilegalidade da decisão, ou do carácter «grosseiro» da apreciação dos pressupostos de facto.
É certo que um pedido de indemnização dependa de prévia revogação da decisão danosa na respectiva ordem jurisdicional, mas quem vai decidir sobre o carácter “manifesto” da ilegalidade ou sobre o carácter “grosseiro” do erro de valoração da prova? Nada dizendo o diploma a esse respeito, a conclusão a tirar parece ser a de que tal juízo competirá ao tribunal competente para a acção de indemnização. Ora, esta solução não é isenta de crítica. De facto, a mesma lógica institucional e normativa, que conduz a condicionar o pedido de indemnização à revogação da decisão danosa na respectiva ordem de jurisdição, impõe que também seja esta ordem de jurisdição a dizer se o erro cometido pelo tribunal recorrido foi manifesto ou grosseiro, quanto ao direito ou quanto à apreciação dos factos. De outro modo, e em se tratando de responsabilidade pela decisão errada de um tribunal judicial, teríamos que, depois de ela haver sido revogada por um Tribunal da Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, iria ser um tribunal administrativo, por fim, a apreciar a gravidade do erro. Se for esta a solução a acolher no futuro, corre-se o risco de se verificar uma grave violação da independência de cada ordem de jurisdição – a qual reverte, ao fim e ao cabo, ao próprio princípio da independência da função judicial.
9. Suscitam-se, igualmente, dúvidas sobre a clareza da solução acolhida quanto à responsabilidade dos magistrados judiciais e do Ministério Público (artigo 14º, nº 1).
Razões de segurança jurídica e de garantia do princípio da independência e irresponsabilidade dos magistrados judiciais, aconselhariam a densificação dos conceitos de culpa grave e dolo para os efeitos da propositura da acção do direito de regresso, à semelhança do que sucede em outros ordenamentos europeus.
As garantias constitucionais de independência e irresponsabilidade dos magistrados judiciais impõem que estes só respondam por violações concretas dos deveres funcionais e nunca por eventuais erros ou incorrecções das decisões que proferem.
Importaria, assim, clarificar, na previsão contida no nº 2 do artigo 14º, que competirá aos Conselhos de disciplina dos magistrados a averiguação prévia da violação concreta dos seus deveres funcionais, para efeitos do apuramento da natureza gravemente culposa ou dolosa da sua conduta. Essa precisão evitaria o risco de uma interpretação indevida do preceito, no sentido de que a proposição da acção de regresso pelos Conselhos decorreria automaticamente da condenação do Estado nos termos do artigo 13º, a qual ofenderia as referidas garantias constitucionais.
10. No âmbito da responsabilidade por actos das funções política e legislativa, verifica-se que, de uma ausência quase total de fundamentos para a proposição da correspondente acção de responsabilidade civil contra o Estado, se transita para uma desmesurada extensão das hipóteses de responsabilidade. Tal é patente no facto de se prever, para além da responsabilidade pelo ilícito decorrente da inconstitucionalidade por acção e omissão, também a que emerge da violação, por acção ou omissão, de obrigações impostas pelo direito internacional, direito comunitário e lei com valor reforçado.
11. Impõe-se, antes de mais, assinalar uma discrepância textual e lógico-sistemática entre a epígrafe do Capítulo IV, que se reporta às “funções política e legislativa”, e a epígrafe do artigo 15º, que menciona a função “político-legislativa”. Terá pretendido o legislador reconduzir a actividade política e a legislativa a funções distintas ou condensá-las na mesma função? Trata-se de uma redacção deficiente e geradora de incerteza jurídica quanto à determinação do objecto específico da responsabilidade.
Quanto à extensão dos pressupostos geradores de responsabilidade, afigura-se ser problemática e preocupante a solução acolhida quanto à responsabilidade por danos provocados, tanto por actos desconformes ao direito internacional e ao direito comunitário (artigo 15º, nº 1), como pela omissão das medidas legislativas necessárias para conferir exequibilidade a normas de convenções internacionais e a normas comunitárias que delas careçam (artigo 15º, nº 3).
Isto, não só pelo que tal significa em termos dos efeitos financeiros e processuais derivados de um profundo alargamento da responsabilidade dos entes públicos, como também pelo facto de criar um incomportável cenário de dupla oneração do Estado, que responderia pelo mesmo incumprimento, tanto no plano interno, como no plano comunitário e internacional.
Não parece, também, ser aceitável a consagração de um instituto de responsabilidade civil extracontratual fundado na omissão de providências legislativas necessárias para dar exequibilidade a actos legislativos de valor reforçado (artigo 15º, nº3).
Esse instituto jurídico resulta na criação de um sistema implícito e subliminar de “fiscalização difusa da legalidade por omissão” para efeitos da constituição do Estado em responsabilidade civil, o qual merece reparo, na medida em que:
a) Cria situações de grande incerteza jurídica ao disseminar pelos tribunais comuns o poder de verificar uma situação omissiva de legislação complementar de lei reforçada, com base em pressupostos incertos e sem a existência de institutos suficientes e céleres de uniformização jurisprudencial, instituindo, deste modo, um sistema potenciador de desarmonia de julgados, situações de desigualdade entre particulares e insegurança jurídica;
b) Dispensa, sem fundamento razoável, a intervenção do Tribunal Constitucional, como “juiz de leis”, para a situação da omissão de normas legais que confiram exequibilidade a leis reforçadas, quando determina (artigo15, nº 5) essa mesma intervenção na situação paralela de prévia verificação de uma inconstitucionalidade por omissão (situação cuja alteração deveria revestir a forma de lei orgânica);
c) Não define os requisitos geradores de ilicitude decorrente da omissão de providências legislativas que confiram exequibilidade a leis de valor reforçado, daí resultando uma larga margem de casuismo e incerteza que deprecia a liberdade conformadora do legislador. Abrangerá, por exemplo, a referida omissão, apenas inobservância dos prazos fixados nas leis reforçadas, tendo em vista a respectiva complementação legal, ou envolverá igualmente outras disposições constantes dessas leis que, carecendo de desenvolvimento legal, não fixam prazos para esse efeito?
12. No plano do julgamento da inconstitucionalidade e ilegalidade por acção, crê-se que se deveria ponderar, pelo menos numa fase transitória, um regime mais cautelar e prudente, nos termos do qual a responsabilidade pelo exercício da função legislativa se cingisse aos casos em que exista prévia declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral por parte do Tribunal Constitucional. Tais razões prudenciais decorrem nomeadamente:
- da necessidade de se evitar situações incertas e desiguais derivadas de uma desarmonia de julgados, que podem afectar o próprio Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta, questionando a justeza das indemnizações atribuídas com fundamento em normas que, tendo sido julgadas inconstitucionais ou ilegais, deixaram posteriormente de o ser em jurisprudência constante do mesmo Tribunal;
- da circunstância de se poder precludir a constituição do Estado em responsabilidade, mesmo quando os particulares sejam prejudicados por lei inconstitucional se, ao abrigo do nº 4 do artigo 282º da Constituição, o Tribunal Constitucional vier a restringir temporalmente os efeitos da sua decisão, por razões de segurança jurídica, equidade e interesse público, salvaguardando os efeitos passados da mesma lei que julgou inconstitucional.
Acrescente-se que não se entende a razão pela qual o diploma exige um carácter manifesto para a inconstitucionalidade que afecte decisões judiciais e prescinda desse mesmo grau de evidência para os actos legislativos. Seria, porventura, mais prudente restringir a responsabilidade a casos de leis manifestamente inconstitucionais ou ilegais.
Finalmente, não se qualifica o tipo de inconstitucionalidade relevante para acarretar a responsabilidade dos entes públicos (artigo 15º, nº 4), diferindo para o aplicador um poder de inovação criadora de direito que deve competir ao legislador. Semelhante opção normativa pode gerar situações de desigualdade, bem como de incerteza quanto ao desfecho processual, na medida em que, por exemplo, nalguns casos se fará relevar apenas a inconstitucionalidade material como fundamento da existência da responsabilidade, enquanto noutros poderão ser valorados, para o mesmo efeito, os restantes tipos de inconstitucionalidade.
13. Importaria ponderar sobre se não seria mais adequado que os danos susceptíveis de indemnização fossem circunscritos ao universo da violação de direitos, liberdades e garantias, tal como se estabelece no artigo 22º da Constituição, ao invés de se potenciar o alargamento da responsabilidade à afectação de outros direitos, opção susceptível de originar obrigações e encargos financeiros imprevisíveis para o Estado.
14. Finalmente, de um ponto de vista global, ultrapassando considerações de cariz técnico-jurídico de pormenor, considero que a questão fulcral que me leva a pedir a reapreciação deste diploma situa-se no seguinte ponto: o presente regime de responsabilidade extracontratual do Estado reclama um esforço suplementar de reflexão dos Deputados quanto aos seus efeitos. Desde logo, quanto aos seus efeitos no plano da sanidade e equilíbrio das finanças do Estado, os quais derivam, sobretudo, do modelo adoptado pelo diploma para o regime de responsabilidade devido ao exercício da função legislativa. Depois, relativamente às consequências que se irão verificar no domínio da eficiência do sistema de justiça, num momento em que este se encontra num profundo processo de reforma com vista a dar resposta a outras exigências. Por fim, no tocante ao funcionamento e modernização da Administração Pública, que podem ser seriamente postas em causa por um regime que, querendo estimular a competência e o sentido da responsabilidade, acabe por fomentar a paralisia e a «não-decisão».
Considero, em síntese, que deve ser repensado o pressuposto essencial em que assenta o presente diploma, nos termos do qual o Estado assumiria uma função «previdencialista» dos danos e riscos sociais através de uma expansão excessiva dos pressupostos de responsabilidade das entidades públicas, com especial relevo no domínio do exercício da função legislativa, ponto que não deixaria de contribuir, em prejuízo manifesto do interesse nacional, para uma relação pouco solidária entre o poder político e a sociedade civil.
Ante o exposto, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 134º, alínea b), e 136º, nº 1, da Constituição da República, decidi não promulgar como lei o Decreto nº 150/X da Assembleia da República, solicitando, pelos fundamentos apresentados, uma nova apreciação do citado diploma.
Com elevada consideração,
O Presidente da República
Aníbal Cavaco Silva
24.08.2007