Senhor Presidente da Assembleia da República
Excelência,
Tendo recebido, para ser promulgado como lei, o Decreto nº 349/X da Assembleia da República, que procede à primeira alteração à Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, decidi, nos termos do artigo 136º da Constituição, não promulgar aquele diploma, com os seguintes fundamentos:
1 – Na sociedade portuguesa, a opção pela vida em comum em união de facto tem vindo a assumir uma dimensão crescente, como o revelam as estatísticas que evidenciam um aumento do número daqueles que procedem àquela opção.
Trata-se da escolha pessoal de um modo de vida em comum que, numa sociedade livre, aberta e plural, o Estado deve respeitar, não colocando quaisquer entraves à sua constituição, nem impondo aos cidadãos um outro modelo de comunhão de vida.
2 – A dimensão que este fenómeno adquiriu, até em termos puramente quantitativos, tem suscitado múltiplas questões aos mais diversos níveis, quer em termos pessoais, quer em termos patrimoniais.
Simplesmente, a definição global do regime jurídico das uniões de facto impõe, por parte do legislador, uma opção entre dois modelos claramente diferenciados: um, assenta numa tendencial aproximação do regime das uniões de facto ao regime jurídico do casamento; outro, distingue de forma nítida, seja quanto aos pressupostos, seja quanto ao respectivo conteúdo, o regime do casamento do regime da união de facto, configurando a união de facto como uma opção de liberdade a que correspondem efeitos jurídicos menos densos e mais flexíveis do que os do casamento, sem prejuízo da extensão pontual de direitos e deveres imposta pelo princípio constitucional da igualdade.
3 – Trata-se de uma opção de fundo, que se impõe ao legislador, entre dois modelos jurídicos claramente diferenciados, a que corresponderão soluções normativas também claramente distintas, com consequências práticas muito diversas na esfera pessoal dos cidadãos.
Abre-se, pois, a este respeito, um amplo espaço de debate na sociedade portuguesa, que deve ser aprofundado e amadurecido de forma muito ponderada, uma vez que está em causa o respeito por uma decisão livre e voluntária de muitos milhares de pessoas, as quais optaram por um tipo de vida em comum que não desejaram fosse enquadrado no regime jurídico do casamento.
4 – Na verdade, a equiparação do regime jurídico das uniões de facto ao regime do casamento pode redundar, afinal, na compressão de um espaço de liberdade de escolha. Ao que acresce o risco de uma tendencial equiparação entre duas realidades distintas – e que os cidadãos pretendem que assim o sejam – se converter, no fim de contas, na criação de dois tipos de casamento ou, melhor dizendo, de transformar a união de facto num «para-casamento», num «proto-casamento» ou num «casamento de segunda ordem».
5 – Suscitam-se, a este propósito, diversas interrogações. Assim, é possível questionar, desde logo: deve o regime jurídico das uniões de facto evoluir no sentido da equiparação ao do casamento? Ou, ao invés, deve subsistir um regime de união de facto, razoável e claramente distinto do regime do casamento, menos denso e mais flexível, que os indivíduos possam livremente escolher? Se o legislador optar por um modelo de equiparação, não se deveria conceder aos cidadãos a possibilidade de, no mínimo, continuarem a viver fora desse enquadramento, agora mais rígido? Será possível conceber um modelo que assegure, de forma equilibrada, uma protecção jurídica mais consistente aos que decidam viver em união de facto mas sem que daí resulte uma indesejada equiparação ao regime do casamento?
6 – O diploma em apreço contém soluções normativas complexas que claramente indiciam que o legislador optou por aproximar o regime das uniões de facto ao regime do casamento – estabelecendo, por exemplo, no artigo 5º-A, uma presunção da compropriedade de bens e uma regra de responsabilidade solidária por dívidas ou prevendo a possibilidade de compensação de danos em caso de dissolução da união de facto –, sem que tal opção tenha sido precedida do necessário debate na sociedade portuguesa, envolvendo especialistas em diversas áreas relevantes para o assunto em questão e, bem assim, todos os cidadãos.
7 – A ausência de um debate aprofundado sobre uma matéria que é naturalmente geradora de controvérsia revela, além disso, a inoportunidade de se proceder a uma alteração de fundo deste alcance no actual momento de final da legislatura, em que a atenção dos agentes políticos e dos cidadãos se encontra concentrada noutras prioridades. Para mais, num domínio como este, em que se encontram em causa múltiplos aspectos práticos da vida das pessoas, impõe-se um princípio de estabilidade e previsibilidade do Direito, pelo que qualquer solução que se venha a acolher deve merecer uma adequada ponderação e um aprofundado debate.
8 – Assim, sem contestar a eventual necessidade de se proceder a um aperfeiçoamento do regime jurídico das uniões de facto – um juízo que deve caber, em primeira linha, ao novo legislador – considera-se que, na actual conjuntura, essa alteração não só é inoportuna como não foi objecto de uma discussão com a profundidade que a importância do tema necessariamente exige, até pelas consequências que dele decorrem para a vida de milhares de portugueses.
Assim, nos termos do artigo 136º da Constituição, decidi devolver à Assembleia da República sem promulgação o Decreto n º 349/X da Assembleia da República, que procede à primeira alteração à Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio.
24.08.2009