Mensagem do Presidente da República à Assembleia da República, a propósito da devolução do diploma relativo à alteração da Lei Eleitoral para a Assembleia da República

O Presidente da República enviou à Assembleia da República uma mensagem a propósito da devolução do diploma relativo à alteração da Lei Eleitoral para a Assembleia da República.

É o seguinte o teor da mensagem do Presidente da República:

“Senhor Presidente da Assembleia da República

Excelência,

Tendo recebido, para ser promulgado como lei, o Decreto nº 261/X da Assembleia da República, que procede à décima quinta alteração à Lei nº 14/79, de 16 de Maio (Lei Eleitoral para a Assembleia da República), decidi, nos termos do artigo 136º da Constituição da República, não promulgar aquela lei orgânica, com os fundamentos seguintes:

1 – Constituem imperativos nacionais fortalecer os laços dos Portugueses residentes no estrangeiro com o País e contribuir para um aumento da participação cívica e política de todos os cidadãos.

2 – Tais imperativos correspondem a compromissos que desde sempre assumi perante os Portugueses de tudo fazer para garantir uma maior aproximação entre Portugal e as suas comunidades espalhadas pelo mundo.

3 – A exclusividade do voto presencial dos cidadãos residentes no estrangeiro, decorrente da revogação do Decreto-Lei nº 95-C/76, de 30 de Janeiro, constitui um elemento que irá promover a abstenção, tal como foi alertado, em devido tempo, por uma entidade independente como a Comissão Nacional de Eleições, através do seu porta-voz, e tem sido evidenciado em estudos de instituições internacionais de referência. Existe, aliás, um dado extremamente revelador: a participação dos eleitores residentes no estrangeiro em actos eleitorais é significativamente mais elevada, em cerca do dobro, nas eleições para a Assembleia da República, em que o voto por correspondência é permitido, do que nas eleições para a Presidência da República, em que o voto presencial é obrigatório.

4 – Neste contexto, a alteração agora proposta só poderia admitir-se se, porventura, ocorresse uma de duas situações: verificar-se que, ao fim de mais de trinta anos de vigência, o regime a que agora se pretende pôr termo tinha dado azo à prática sistemática de fraudes ou ilícitos eleitorais; ou concluir-se que tal regime, que vigora desde 1976, é contrário aos princípios constitucionais.

5 – A experiência de mais de três décadas não demonstra a ocorrência de situações de fraude nem foram verificados ilícitos eleitorais praticados através do voto por correspondência. Pelo contrário, os resultados obtidos nos círculos da emigração nunca foram contestados pelas diversas forças político-partidárias.

6 – Por outro lado, a Constituição não impõe a presencialidade do voto nas eleições para a Assembleia da República, situando-se na linha de diversos países desenvolvidos que distinguem claramente os princípios da pessoalidade e da presencialidade do voto e admitem o voto por correspondência, podendo citar-se, entre muitos outros, a Alemanha, a Áustria, o Canadá, a Dinamarca, a Irlanda, a Noruega, o Luxemburgo, a Espanha, a Itália, o Reino Unido, a Suíça, a Bélgica, a Suécia, a Austrália, os Países Baixos ou a Nova Zelândia.

7 – Não se vislumbram, pois, motivos para a alteração que agora se pretende realizar, a qual, não por acaso, foi objecto da firme oposição do Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas, que recentemente recebi em audiência, e que, em carta que me dirigiu, afirmou que «o voto presencial (…) irá afastar ainda mais a participação cívica e política da comunidade portuguesa, onerando grandemente esse desejo participativo dos nossos compatriotas».

8 – No mesmo sentido, têm sido numerosos os apelos feitos por organizações representativas da diáspora e por cidadãos, a título individual, todos chamando a atenção para as dificuldades inerentes ao exercício do voto presencial, o qual obrigaria milhares de pessoas a percorrerem centenas ou milhares de quilómetros para exercerem um direito fundamental que é, no caso em apreço, também a manifestação de um laço cívico, político e afectivo com Portugal.

9 – Importa, por outro lado, ter em conta que o decreto em apreço surge num contexto em que algumas medidas com incidência nas comunidades emigrantes têm suscitado profunda controvérsia, com destaque para a reestruturação da rede consular e para a redução do porte pago no envio de publicações periódicas, criando um sentimento negativo de afastamento dos Portugueses residentes no estrangeiro relativamente ao País.

10 – Tendo em conta, justamente, a dimensão da nossa rede consular, torna-se forçoso concluir que esta é incapaz de satisfazer em pleno as necessidades das nossas comunidades no estrangeiro. Assim, não foi certamente por acaso que o Programa do Governo, no seu capítulo relativo à «Valorização das Comunidades Portuguesas», alude ao recurso «às tecnologias da informação e comunicação em ordem a minorar a deslocação física dos utentes aos postos consulares». De igual modo, não é por acaso que o novo diploma admite que o voto se possa realizar noutros locais que não os postos e secções consulares, nomeadamente em instalações oficiais disponibilizadas pelas autoridades dos países de acolhimento e em sedes do movimento associativo português.

11 – Sucede, porém, que têm sido recebidas informações oficiais que dão conta de que em alguns países – e, concretamente, em países de grandes dimensões com comunidades portuguesas numerosas –, as respectivas autoridades não permitem o exercício do direito de voto fora das instalações oficiais portuguesas. Relativamente a outros países, não existem dados que permitam garantir uma efectiva, adequada e atempada multiplicação dos locais de voto, num momento em que se aproxima o acto eleitoral.

12 – Além disso, se o objectivo proposto é alcançar uma maior «fiabilidade, transparência e rigor» no processo de sufrágio, tal como se afirma na Exposição de Motivos do Projecto de Lei nº 562/X, não é seguro que o novo sistema permita alcançar tal desiderato, tanto mais que, como se prevê que a votação decorra durante três dias, colocam-se, entre outros, problemas como o da garantia da inviolabilidade das urnas situadas fora dos consulados, tal como foi sublinhado pelo Sindicato dos Trabalhadores Consulares, o que pode ameaçar a transparência eleitoral de uma forma até mais intensa do que o modelo de voto postal que actualmente vigora.

13 – No caso em apreço, a obrigatoriedade do voto presencial não tem qualquer paralelo com a situação que ocorre nas eleições para o Presidente da República, pois nestas existe um círculo nacional único, ao passo que nas eleições legislativas se prevê a existência de dois círculos específicos para os cidadãos eleitores residentes no estrangeiro.

14 – Não pode deixar de se assinalar que a Exposição de Motivos do citado Projecto de Lei nº 562/X salienta que só em situações excepcionais se deve afastar a regra da presencialidade do voto, porque «só o voto presencial atesta que é o próprio eleitor que faz a escolha do candidato, garante a não intervenção de vontade alheia no processo eleitoral e assegura o sigilo do voto». Importa notar, todavia, que o Programa do XVII Governo Constitucional, no capítulo relativo às «Instituições e Vida Democrática», defendem uma «modernização do sistema político» que «prepare a introdução do recurso a meios electrónicos de voto».

15 – Em síntese, num tempo em que, até com recurso às novas tecnologias, se torna cada vez mais necessário promover a participação política de todos os cidadãos, muito em especial dos jovens, tal como tenho salientado em diversas ocasiões, creio que só razões muito ponderosas ligadas à verificação sistemática de fraudes eleitorais – o que não é o caso – justificariam a alteração de um modelo que tem permitido o exercício do direito de voto por parte dos Portugueses residentes no estrangeiro.

16 – Seria aconselhável que uma alteração deste alcance, numa matéria relacionada com procedimentos de sufrágio, fosse objecto de um consenso interpartidário alargado, tanto mais que a mesma é introduzida num ano em que irão ter lugar eleições legislativas.

17 – Acresce que a aproximação do acto eleitoral limita consideravelmente o tempo disponível para a introdução de uma mudança desta natureza, sobretudo quando a mesma exige a multiplicação dos locais de voto em vários pontos dos cinco continentes e, em simultâneo, a garantia de que daí não existirá um risco para a fiabilidade do sufrágio.

18 – A medida que agora se pretende introduzir afigura-se, pois, inoportuna, seja quanto ao seu conteúdo e efeitos no que se refere à participação política dos emigrantes e à sua ligação a Portugal, seja quanto ao momento em que ocorre.


Assim, e pelas razões atrás anunciadas, entendi não promulgar o Decreto nº 261/X, devolvendo-o para os devidos efeitos à Assembleia da República.

Com elevada consideração,

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Aníbal Cavaco Silva”

03.02.2009