Mensagem do Presidente da República à Assembleia da República, a propósito da lei que regula a Procriação Medicamente Assistida

Promulguei, para ser publicado como lei, o Decreto da Assembleia da República n.º 64/X, que regula a procriação medicamente assistida.

A procriação medicamente assistida, praticada em Portugal desde 1986 e de há muito juridicamente regulada na maioria dos países da União Europeia, carecia, como é consensualmente reconhecido, de urgente enquadramento normativo. Esta lei, conformadora de uma das vias de resolução do problema da infertilidade de um número significativo de casais, vem colmatar uma importante lacuna do nosso ordenamento jurídico, e dar cumprimento a um dever de legislar constitucionalmente imposto desde 1997.

Trata-se de uma matéria complexa do ponto de vista biomédico, social e jurídico, e de implicações muito sensíveis no âmbito da investigação científica, da qual podem resultar significativos benefícios e renovadas esperanças para um número crescente de doentes, aspectos que devem ser conjuntamente ponderados. Envolve, em todos esses domínios, questões éticas que, numa sociedade democrática e pluralista, exigem amplo debate público. Como tal, não podem deixar de saudar-se todos aqueles que, no exercício de um direito de cidadania, contribuíram para esse debate, nomeadamente através de iniciativas de grupos de cidadãos merecedoras de todo o respeito, algumas das quais ainda a seguir o seu curso.

Não tendo encontrado especiais razões de mérito que me levassem a solicitar a esse órgão de soberania uma reapreciação do diploma, não posso deixar de chamar a atenção para dois pontos:

- por um lado, para a necessidade de regulação complementar no domínio da protecção efectiva da vida humana embrionária - um imperativo tanto mais relevante quanto se dá o caso de o objecto do diploma transcender o âmbito estrito da procriação medicamente assistida;

- por outro, para a composição e condições de funcionamento do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.

De entre os domínios cuja regulação complementar ou regulamentação administrativa pode assumir particular sensibilidade, destacaria:

i) O imperativo de se garantir uma protecção efectiva de embriões criopreservados e qualificados como viáveis nos termos da presente lei, relativamente aos quais se verifique, antes de passados três anos, simultaneamente uma quebra do compromisso do beneficiário em utilizá-los em novo processo de transferência e a sua recusa em consentir na doação a outro casal;

ii) A necessidade de eventuais lacunas e disposições normativas de sentido indeterminado constantes da lei, e respeitantes à matéria disciplinada pela Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, e pelo seu Protocolo Adicional que Proíbe a Clonagem de Seres Humanos, deverem ser, respectivamente, integradas e especificadas em conformidade com essas normas internacionais;

iii) A preocupação de se assegurar, em intervenções legais subsequentes que incidam em matérias como a transferência nuclear somática e a investigação científica em células estaminais, que, mesmo quando a lei permita a investigação em embriões “in vitro”, fique garantida a dignidade do embrião excluído de um projecto parental.

O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida será necessariamente o órgão fundamental de regulação nestas matérias, uma vez que lhe é cometida a responsabilidade de avaliar as questões éticas, legais e sociais que a procriação medicamente assistida suscita e lhe cabe analisar rigorosamente os projectos de investigação em embriões excedentários, assegurando a razoável possibilidade de que deles “possa resultar benefício para a Humanidade”.

Importa, pois, mesmo sem perder de vista a possibilidade de recurso aos Tribunais, garantir a independência, multidisciplinaridade e pluralismo dos seus membros, a transparência dos seus procedimentos, e a existência de condições para um desempenho adequado das competências que lhe estão atribuídas.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Aníbal Cavaco Silva

11.07.2006