Discurso do Presidente da República na Cerimónia de Comemoração dos 104 anos da Proclamação da República
Paços do Concelho, Lisboa, 5 de outubro de 2014

Comemoramos hoje o 5 de outubro, a data fundadora da nossa República, o regime em que nos orgulhamos de viver.

Numa República, não existem privilégios de nascimento ou de classe social. Todos são iguais em dignidade e direitos.

Numa República, ninguém está acima da lei. As leis são aprovadas pelos legítimos representantes dos cidadãos e aplicadas por tribunais que administram a justiça em nome do povo.

Numa República, todos somos cidadãos. Ninguém está isento de contribuir ativamente para melhorar o futuro do seu país.

Foram estes os ideais que, há mais de cem anos, levaram à instauração do regime republicano.

A República trouxe também consigo a aspiração de uma nova ética, norteada por valores e princípios, como o serviço à causa pública, a transparência da ação política e uma maior justiça social entre todos os Portugueses.

Celebrar a República é também fazer o balanço dos sonhos que não foram cumpridos e refletir sobre o que aconteceu depois do 5 de outubro de 1910.

O regime republicano, como é reconhecido pela História, caracterizou-se por uma extrema instabilidade política, em que os governos se sucederam a um ritmo vertiginoso.

Em dezasseis anos, entre 1910 e o golpe militar de 1926, existiram 45 governos. Cada governo durou, em média, quatro meses. Existiu mesmo um executivo que exerceu funções apenas durante um dia. Dos oito presidentes da República, só um concluiu o mandato para que fora designado.

Devido a esta instabilidade crónica, o regime da Primeira República foi incapaz de cumprir muitos dos ideais e dos sonhos que estiveram na génese da revolução de 5 de outubro de 1910 e tudo terminaria com um golpe militar autoritário que instaurou uma ditadura.

Há quarenta anos, o 25 de abril de 1974 devolver-nos-ia a esperança de um tempo novo, com mais liberdade e democracia, com mais desenvolvimento económico e mais justiça social.

Aqui chegámos hoje, ao 5 de outubro de 2014. Celebramos este 5 de outubro num momento crucial e decisivo para a nossa República. Portugal ainda sente os efeitos de uma das mais graves crises que teve de enfrentar nas últimas décadas e, embora existam sinais de esperança, são múltiplos os desafios que temos pela frente para alcançarmos níveis sustentáveis de crescimento económico e de criação de emprego.

Por isso, é urgente procedermos a uma reflexão séria sobre o regime político português e encontrarmos em conjunto soluções para os problemas que afetam a governabilidade da nossa República.

Como o demonstram sucessivos estudos e inquéritos levados a cabo por entidades credíveis e independentes, os Portugueses são dos povos da União Europeia que demonstram maiores níveis de insatisfação com o regime em que vivem.

De acordo com os dados do último inquérito do Eurobarómetro, 89 por cento dos inquiridos tendem a não confiar nos partidos políticos e 73 por cento dizem estar insatisfeitos sobre o modo como a democracia funciona no nosso país. Só em cinco dos 28 Estados-membros da União Europeia existe um grau mais elevado de insatisfação com o funcionamento das instituições democráticas.

As condições em que vivemos hoje são muito diferentes daquelas que levaram à queda da I República. Não corremos o risco de regresso a uma ditadura nem de um golpe militar como aquele que eclodiu em 1926.

A pertença a um espaço como a União Europeia dá-nos a garantia de partilharmos uma comunidade de valores democráticos e princípios de liberdade.

Mais decisivamente ainda, os Portugueses são um povo que preza a vida democrática, e demonstraram-no várias vezes ao longo das últimas décadas.

Lutámos pela democracia antes e depois do 25 de abril.

Lutámos pela liberdade quando participámos nas eleições para a Assembleia Constituinte, naquele que foi o ato eleitoral mais concorrido da nossa História.

Estivemos ao lado da democracia quando aderimos com entusiasmo ao projeto europeu, uma opção histórica de benefícios inquestionáveis.

Mais recentemente, perante uma crise económica e social de enormes proporções, o povo português demonstrou, uma vez ainda, o seu exemplar sentido de civismo e de responsabilidade.

Tudo isto nos dá razões de esperança e representa um motivo para lutarmos pela qualidade da nossa democracia.

Minhas Senhoras e meu Senhores,

Os Portugueses não estão insatisfeitos com a democracia ou com a República. Estão insatisfeitos, isso sim, com a forma como as instituições democráticas têm funcionado no nosso país.

Vários inquéritos de opinião evidenciam que a falta de confiança nas instituições tem vindo a crescer e a aprofundar-se.

A insatisfação dos cidadãos e a sua falta de confiança nas instituições – sobretudo nos partidos – têm tido reflexo em sucessivos atos eleitorais, marcados por níveis preocupantes de abstenção.

De igual modo, é cada vez maior a repulsa dos cidadãos mais qualificados pelo exercício de funções públicas. Não apenas no que toca ao desempenho de cargos políticos, mas também ao exercício de funções nas diversas áreas da Administração Pública. A situação tem vindo a agravar-se e os custos que daí resultam são, certamente, muito significativos.

Já se pensou nos prejuízos para o País se não tivermos as pessoas com as competências certas em determinados altos cargos da Administração Pública?

Para esta situação contribui, sem dúvida, uma maior atratividade do sector privado, em regra mais bem remunerado e, sobretudo, sem a exposição mediática e o desgaste pessoal e até familiar que, muitas vezes, estão associados ao desempenho de cargos públicos.

O problema, no entanto, é mais vasto, decorrendo da falta de incentivos para o exercício de cargos públicos e até da existência de fatores que adensam a repulsa por essa opção.

O exercício de cargos na esfera política ou administrativa deixou de estar associado a uma noção patriótica de serviço à causa pública, de dedicação à comunidade, de reconhecimento do mérito, para passar a ser visto como um sinal de carreirismo e de oportunismo, associado, com frequência, a um percurso de vida inteiramente situado no seio dos partidos.

Na atividade partidária, têm vindo a agravar-se as barreiras à entrada de novos protagonistas e as limitações à concorrência na escolha dos dirigentes, aos mais diversos níveis, favorecendo inevitavelmente aqueles que já estão instalados nos aparelhos partidários.

Ora, se a profissionalização da atividade política, em si mesma, nada tem de censurável ou negativa, ela surge como um fenómeno preocupante quando traz associada uma marca de desprestígio e de ausência de méritos e qualificações.

Por outro lado, a tendência para a demagogia e o populismo contribui para acentuar o afastamento dos quadros profissionais mais qualificados do exercício de funções públicas.

Também noutros domínios fundamentais para o aprofundamento da qualidade da democracia – como é o caso do sistema eleitoral –, em torno dos quais, desde há décadas, se fazem estudos e debates, pouco se avançou em concreto para combater o afastamento dos cidadãos relativamente à vida cívica.

É essencial, como aliás tem sido unanimemente reconhecido, promover uma maior aproximação entre eleitos e eleitores. De igual modo, é essencial que exista uma maior transparência no financiamento político-partidário. Em nome da ética republicana, para reconciliarmos os cidadãos com a política, não podemos ceder à tentação fácil do populismo de ocasião, nem adotar um registo de crítica sistemática e inconsequente. Mas devemos ter consciência de que existem reformas no sistema político que são discutidas desde há muito, sem que desses debates surjam mudanças efetivas – e necessárias.

Minhas Senhoras e meu Senhores

A República foi concebida como uma democracia de compromisso e diálogo. Aqueles que, em 1976, elaboraram e aprovaram a nossa Constituição desenharam um modelo democrático assente numa distribuição equilibrada entre os vários órgãos de soberania, mas muito exigente para o sentido de responsabilidade dos agentes políticos.

O sistema eleitoral proporcional, como aquele que possuímos, favorece a representatividade de diversas correntes de opinião no Parlamento, mas traz consigo uma exigência de que os Portugueses devem estar conscientes. Para alcançar a governabilidade e a estabilidade políticas no quadro de um sistema eleitoral proporcional, os diversos interlocutores têm de adotar e cultivar uma cultura de compromisso.

O sistema eleitoral proporcional só permite uma governabilidade estável e duradoura se for acompanhado de entendimentos partidários de curto e médio prazo. É isso que sucede, há muito, em diversas democracias europeias consolidadas, pelo que é de estranhar que subsistam algumas resistências à instauração de uma cultura de compromisso em Portugal.

Mantendo-se a tendência das forças partidárias para rejeitarem uma cultura de compromisso, não é de excluir, sem qualquer dose de alarmismo, um aumento dos níveis de abstenção para limiares incomportáveis ou a implosão do sistema partidário português tal como o conhecemos.

A persistência do tacticismo e do imediatismo, a teimosia de uma política de vistas curtas, exclusivamente centrada nos interesses partidários, trará custos a médio prazo para a democracia portuguesa no seu todo.

Os partidos políticos e as suas lideranças não podem viver na ilusão de que tudo isso lhes passará ao lado e de que sairão incólumes de uma eventual transformação profunda do nosso sistema político-partidário.

Como tenho referido em várias ocasiões, só através de uma cultura de compromisso poderemos alcançar a indispensável estabilidade governativa. Devemos recordar-nos disto no dia em que celebramos uma data de festa e esperança – o 5 de outubro de 1910 –, em que não podemos esquecer que foi a crónica instabilidade política que levou à queda da Primeira República, com as nefastas consequências que os Portugueses sofreram durante quase meio século de ditadura.

Se a existência de uma cultura de compromisso entre os agentes políticos e económicos, entre os decisores públicos e os parceiros sociais sempre foi importante para a consolidação e a qualidade da nossa democracia, ela configura-se como indispensável nos tempos adversos que vivemos.

A Europa encontra-se perante sérios desafios. Emergiram novas ameaças, designadamente de origem externa, que irão pôr à prova a solidez e a consistência do projeto da União Europeia.

A par disso, as exigências decorrentes do processo de integração, nomeadamente as que decorrem do Pacto de Estabilidade e Crescimento e do Tratado Orçamental, implicam, da parte dos diversos governos nacionais, a manutenção do esforço de contenção dos défices das contas públicas e de controlo rigoroso da despesa.

O modelo do Estado social não está, de modo algum, posto em causa. Pelo contrário, é justamente para conseguir preservar esse modelo, numa Europa cada vez mais afetada pela quebra da natalidade e pelo envelhecimento das populações, que somos obrigados a proceder a uma utilização muito criteriosa dos escassos recursos públicos disponíveis.

É neste contexto que os agentes políticos devem assumir, de uma vez por todas, uma cultura de responsabilidade e uma cultura de verdade.

Na vida política portuguesa, tem sido prática constante, sobretudo nas últimas décadas, fazerem-se promessas e anunciarem-se medidas irrealistas com vista a conquistar o apoio dos cidadãos e o voto do eleitorado.

O incumprimento das promessas feitas constitui um dos principais fatores de aumento da descrença dos Portugueses na sua classe política e de desconfiança nas instituições.

É tempo de instituir uma cultura de maior responsabilidade e realismo, pois a conjuntura que atravessamos não se compadece com promessas de facilidades nem com soluções utópicas.

Se as dificuldades são inegáveis, existem, contudo, fundados motivos para termos esperança no futuro. Mas a esperança constrói-se, não se promete. A esperança constrói-se com trabalho e com responsabilidade, com sentido de interesse nacional.

Quem não for capaz de alcançar os compromissos necessários a uma governação estável, poderá alcançar o poder, mas dificilmente terá a garantia de o exercer por muito tempo.

O desafio da responsabilidade cívica não interpela apenas a classe política. Dirige-se a todos, a empresários, trabalhadores e sindicalistas, aos profissionais liberais, aos dirigentes do Estado e aos funcionários da Administração pública, aos professores de todos os escalões de ensino, aos profissionais da comunicação social.

O desafio da responsabilidade cívica dirige-se, também ele, aos jovens. Implica que sejam mais exigentes em relação aos que nos governam, mas que sejam igualmente exigentes relativamente a si próprios e à qualidade do ensino que lhes é ministrado.

Os jovens portugueses não devem enveredar pelo pessimismo e pela maledicência, não devem desperdiçar energias e o imenso talento que têm a criticar tudo e todos, quando tanto podem dar à vossa terra, Portugal, um dos melhores países do mundo para viver.

Numa República, o trabalho e o esforço de cada um são património de todos. Aquilo que fizerem por Portugal, será feito para vós.

Muito obrigado.