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Assembleia Geral das Nações Unidas
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Nova Iorque, EUA, 28 de setembro de 2015 ler mais: Assembleia Geral das Nações Unidas

INTERVENÇÕES

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Discurso do ex-Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, na Cerimónia Comemorativa do 37º Aniversário do 25 de Abril
Palácio de Belém, 25 de Abril de 2011

Agradeço ao senhor Presidente da República o convite que me fez para falar hoje, aqui, nesta comemoração do Dia da Liberdade. À legitimidade institucional deste convite, é-me grato juntar outra, mais pessoal, de que me orgulho: a de sempre me ter considerado um homem do 25 de Abril e de, em todos os cargos que exerci, nomeadamente no de Presidente da República, ter procurado ser fiel a essa responsabilidade e a essa honra.

Comemoramos os 37 anos da Revolução portuguesa num tempo dominado por desafios, receios e incertezas. Mas é em momentos destes, mais do que em quaisquer outros, que é necessário ir à origem buscar inspiração, ânimo e coragem. A hora exige tudo de todos nós. Mas, mesmo conscientes das ameaças, dos perigos e das desilusões, é ainda com entusiasmada convicção que reafirmamos: o 25 de Abril valeu a pena e os que o fizeram merecem a nossa gratidão!

A história do século XX ensinou-nos, tragicamente, que é nas alturas de crise que, sem hesitações, temos de encontrar na democracia, e no seu pleno exercício, o fundamento primeiro onde firmar o esforço que nos permite vencer as dificuldades. Porque é na democracia, no que é e no que representa, que se acha a energia colectiva que dá determinação, lucidez e alento para fazer o que é preciso ser feito.

A segunda década deste século, agora iniciada, parece aliás ser a corroboração viva da força regeneradora dos ideais democráticos que, para além das clivagens culturais, civilizacionais e religiosas, une os povos na sua demanda comum de liberdade, igualdade, justiça e dignidade. Devo, de resto, confessar que o genuíno interesse, apreço e admiração pelo 25 de Abril e pela nossa experiência de transição democrática expressos por tantos amigos e interlocutores Árabes que tenho encontrado me têm enchido de orgulho e dado razões adicionais para acreditar que, nestes dias duros para Portugal e para os portugueses, o nosso primeiro dever é mesmo tomarmos a nossa democracia mais viva, mais presente e mais participada.

Não podemos ignorar os sintomas que se têm intensificado e que são preocupantes: a abstenção nos actos eleitorais, a indiferença cívica, o afastamento entre eleitos e eleitores, a descrença nas instituições, a desconfiança da política, o distanciamento dos partidos. Compete aos responsáveis políticos encarar estes desafios e dar-lhes prioridade porque são questões muito sérias que põem em causa o nosso modelo político e social. Mas o dever de renovarmos a democracia, dando-lhe maior estímulo e vigor, não pertence apenas aos responsáveis políticos. Também a sociedade civil, e os cidadãos em geral, têm de assumir esse dever como seu. Para mais, além dos meios clássicos de acção e de participação, há agora, ao dispor de todos, novas tecnologias de informação e de comunicação que oferecem possibilidades nunca antes conhecidas de consciencialização e de intervenção. Precisamos de aumentar e melhorar a qualidade da nossa democracia. Fazer tudo para que isso aconteça é o grande tributo que podemos prestar ao 25 de Abril e àqueles que o tomaram possível.

Juntando-se neste acto de celebração os antigos e o actual Presidente da República, é uma espécie de memória contínua do nosso regime constitucional que se reúne hoje, aqui. Ao longo destas décadas, cada um de nós, que exerceu a magistratura presidencial, viveu momentos complexos e enfrentou provas difíceis, embora em épocas muito diversas. Creio que essa experiência comum nos diz que o Presidente tem uma voz e um papel insubstituíveis, que, a serem activamente usados, podem e devem dar um contributo decisivo para a resolução dos problemas.

A experiência que temos diz-nos ainda que a coragem a pôr na superação das dificuldades ganha afirmação e nitidez quando nos projectamos num horizonte mais largo evitando ficarmos confinados aos limites de um tempo curto. Temos de olhar em frente com desassombro e determinação. Olhar em frente, não para não vermos as dificuldades, mas para equacionar a sua solução numa perspectiva de sustentabilidade e de durabilidade. Por muito urgente que seja - e é! - resolver os problemas imediatos e prementes, não nos podemos deixar esgotar neles, porque isso nos diminui a capacidade de actuação. Um das razões por que chegámos à situação em que estamos foi a falta de sustentabilidade e a ausência de uma visão de longo prazo com que muitas vezes se decidiu e escolheu, comprometendo o futuro.

Sabemo-lo todos: Portugal enfrenta graves dificuldades e não vai ser fácil ultrapassá-las. Encarar a situação de frente é indispensável para conseguirmos fazer o que tem de ser feito. Contudo, mais grave do que os nossos problemas actuais é a sua longa persistência. E é a sua repetição cíclica, fazendo disso uma constante histórica. É o seu arrastamento e a sua degeneração em problemas cada vez mais graves. Reconhecer isto é a primeira condição de uma análise eficaz e de um agir consequente.

Este é o tempo de mudarmos todos radicalmente de atitude. Há que iniciar uma nova fase da nossa relação com o país, com a Europa e com o mundo. Necessitamos de mais perspectiva e de menos miragem, de mais exigência e de menos facilitismo, de mais rigor e de menos desperdício, de mais vontade e de menos voluntarismo. Precisamos de quebrar o ciclo vicioso de bipolaridade em que, depois de sermos os maiores, passamos a ser os piores, após o que voltamos a ser os maiores outra vez. Como ensinou Eduardo Lourenço, temos, colectivamente, de ajustar melhor o que somos com o que pensamos ser; a realidade com a nossa imagem dela.

Há muitos anos que, por exemplo, toda a gente reclama reformas. Olhando para trás, vemos que muitas nunca se fizeram; outras vezes, chamámos grandes reformas estruturais àquilo que foram apenas pequenas medidas conjunturais. Ficámos frequentemente felizes com o acessório e descurámos o essencial. É chegada a hora de todos, mas todos, assumirmos as nossas próprias responsabilidades naquilo que não correu bem.

Sabemos que o nosso Estado é ainda ineficiente e pouco amigo do cidadão, mas devemos saber também que a nossa sociedade civil é fraca, corporativa e pouco dinâmica, acusando o Estado para melhor viver à sua sombra. Sabemos que temos partidos políticos fechados, com poucas ideias e pouco debate, que há, muito mais do que seria desejável, políticos que não estão à altura das responsabilidades, mas sabemos também que muitos cidadãos pouco fazem para alterar esse estado de coisas, preferindo o comodismo do alheamento, da indiferença ou da má-língua inconsequente, como se tudo lhes fosse devido e eles não devessem nada ao país. Sabemos que temos sindicatos às vezes irrealistas nas reivindicações, outras vezes excessivamente próximos de agendas partidárias, mas sabemos também que temos muitos patrões pouco modernos, sem visão, sem ambição nem vontade de a ter. Sabemos que há tanto para fazer neste país, tantas situações revoltantes, de incúria, profunda desigualdade e de injustiça, mas sabemos que os órgãos de comunicação que as denunciam — e bem - não raro preferem a superficialidade, o sensacionalismo, a intriga e o fait-divers ao debate e ao aprofundamento das questões nacionais e internacionais.

Saber isto obriga-nos a olhar para o país com um sentido mais agudo de responsabilidade partilhada e a assumir uma vontade positiva de mudança. Só a partir desta nova atitude é possível construirmos os compromissos necessários, os acordos duradouros, os consensos sólidos, os pactos de regime e a coesão nacional que a gravidade desta hora exige. Só com esta nova atitude seremos capazes de mudar efectivamente o que está mal e dar consistência ao que está bem.

Porque, apesar do muito que está mal, há também muitas coisas que estão bem e de que é justo que nos orgulhemos. O país é hoje um país inteiramente diferente, e muito melhor, do que era em 1974. Sejamos justos: há empresários que ousam e triunfam cá dentro e lá fora. Há políticos com uma vida de dedicação desinteressada à causa pública e ao bem comum. Há trabalhadores competentes e dedicados, que se valorizam diariamente. Há jovens com grande preparação, melhores entre os melhores. Há cidadãos empenhados na vida do país e com capacidade de intervenção e proposta. Há escritores, cientistas, artistas, engenheiros, médicos, professores, arquitectos, chefes de cozinha, desportistas reconhecidos internacionalmente. O que precisamos é fazer dessa excelência uma marca colectiva e não apenas uma distinção individual.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Fernando Pessoa escreveu um dia: “Uma nação que habitualmente pense mal de si mesma acabará por merecer o conceito de si que anteformou. Envenena-se mentalmente. O primeiro passo para uma regeneração, económica ou outra, de Portugal é criarmos um estado de espírito de confiança — mais, de certeza — nessa regeneração”. Nos últimos meses, surgiu como que uma depressão nacional que nos leva a esquecer que somos um Povo com novecentos anos de história, que já passou muitas provações, e que foi capaz, quando tudo parecia bloqueado ou perdido, encontrar saídas e reinventar-se colectivamente. Foi, aliás, o que aconteceu em 25 de Abril de 1974.

Esta crise é uma crise que nos exige mais do que porventura estamos à espera. Vamos ter de ser capazes de pôr as contas em ordem e de crescer o necessário para criar riqueza e emprego. Vai ser preciso diminuir o endividamento externo e reduzir as desigualdades sociais. Vai ser fundamental conquistar a confiança dos mercados e evitar conflitos sociais incontroláveis. Para isso, precisamos de rigor financeiro e de inovação económica, mas também de mais concertação social, sentido de compromisso e redobrada solidariedade e coesão social. Necessitamos da consciência crítica que avalia os erros, mas também da energia que gera laços de confiança e que faz o que é preciso. Esta é uma crise que exige resistência, experiência, determinação, coragem e sensatez, em que cada um tem um papel a desempenhar e onde não pode haver cidadãos de primeira e de segunda, nem cidadãos excluídos. Portugal tem de valorizar o que o distingue e lhe dá valor acrescentado e a nossa capacidade de construir pontes, o nosso poder de adaptação e abertura são trunfos essenciais que temos de saber usar para vencer a crise.

Antes de ser portuguesa, esta crise é uma gravíssima crise mundial e europeia, a maior desde 1929, com uma incidência aguda e particular no nosso país, pois junta às dificuldades gerais as nossas vulnerabilidades próprias. Essa crise mundial é uma crise civilizacional, moral, política, económica e social, que afecta países, grupos sociais e pessoas já antes dela muito vulneráveis. É ainda a crise do modelo económico e social neoliberal, que se recusa a não reconhecer o seu fracasso e continua a querer aproveitar em seu favor os danos que causou. Esta contradição essencial — estarmos a tentar combater os males com os remédios que os causaram — mostra-nos que ainda não foi virada a página.

Para a virar, precisamos de autênticos ideais morais e não da sua mistificação enganadora, de ética e não de especulação criminosa, de consistência e não de volatilidade. Precisamos de dar à política a sua função e a sua nobreza, libertando-a das subordinações espúrias e ilegítimas em que se deixou cair. Precisamos de políticos com voz própria, pensamento novo e autoridade moral. Precisamos de uma Europa que não esteja todos os dias a enfraquecer-se, a negar-se, a dividir-se. Precisamos de ideais, valores e causas. Precisamos de libertar o interesse geral, tantas vezes capturado por interesses particulares. Precisamos de um Estado represtigiado nas suas funções insubstituíveis. Precisamos de uma economia ao serviço de todos os homens. Precisamos de um novo humanismo do século XXI.

Senhor Presidente da República,
Senhores Presidentes Ramalho Eanes e Mário Soares,
Ilustres convidados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Foi com vontade de futuro e valores de esperança que o 25 de Abril se fez. Hoje, trazemos esse dia inicial até nós para encontrar nele a energia de novos alentos e de novas ambições. Evocamos a liberdade, que é inseparável da responsabilidade, da justiça e da solidariedade.

Olhando as dificuldades e mesmo a escuridão do tempo, saibamos dar aos sacrifícios um sentido colectivo e patriótico. Se formos, agora, capazes de ser sensatos, vencer os obstáculos e de arrepiar caminho, as gerações que se seguirão vão olhar-nos como aqueles que, numa hora terrível, tiveram a coragem de corrigir os erros, estiveram à altura das responsabilidades e souberam, por entre perigos e ameaças, abrir um caminho de futuro.

Viva o 25 de Abril!
Viva Portugal!

© Presidência da República Portuguesa - ARQUIVO - Aníbal Cavaco Silva - 2006-2016

Acedeu ao arquivo da Página Oficial da Presidência da República entre 9 de março de 2006 e 9 de março de 2016.

Os conteúdos aqui disponíveis foram colocados na página durante aquele período de 10 anos, correspondente aos dois mandatos do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.