Discurso do Presidente da República na Cerimónia de Abertura do Colóquio “Da Virtude e Fortuna da República ao Republicanismo Pós-Nacional”
Universidade de Coimbra, 30 de Setembro de 2010

Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra,
Senhor Presidente da Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República,
Senhores Professores,
Estudantes,
Senhoras e Senhores,

Vir à Universidade de Coimbra é motivo de regozijo e um privilégio para o intelecto. Ao atravessar o Pátio das Escolas reencontramo-nos sempre com a profundidade do saber, com o rigor do conhecimento sólido, com a seriedade da investigação feita de trabalho e talento. Estamos aqui, nesta ocasião solene, para assinalar o centenário da República. Mas fazemo-lo com um espírito muito especial, o espírito de Coimbra.

O espírito de Coimbra, forjado pelos séculos, faz-nos sentir o que de mais verdadeiro somos: cidadãos da Europa. Coimbra está irmanada com as universidades que, desde a Idade Média, floresceram por todo o Velho Continente e conquistaram justificado prestígio por uma razão muito simples: além de produzir saber e conhecimento, souberam criar em seu torno uma cultura académica própria, um espírito universitário único e original. Há uma marca de distinção e de singularidade em Coimbra. Não por acaso, esta Universidade é procurada por estudantes e investigadores de todo o mundo. Vindos de longe, de outros continentes, sabem que aqui encontrarão uma atmosfera especial, muito para lá do efémero de que é feita a espuma dos nossos dias.

Encontramo-nos em Coimbra para, nesta ocasião solene, assinalar o centenário da República. A Universidade, com a sua antiga sabedoria, soube encontrar, no meio de tantas realizações que têm lugar este ano, uma forma própria de celebrar a República. Coimbra propõe-nos, no dia de hoje, uma reflexão sobre o republicanismo, na sua génese e nos seus desenvolvimentos.

No contexto dessa reflexão, entendeu a Universidade homenagear John Pocock, conferindo-lhe o título de doutor honoris causa. A obra de John Pocock é sobejamente conhecida e não me compete enaltecer o mérito académico e científico daquele que é, sem dúvida, um dos mais originais historiadores das ideias do nosso tempo.

Recordo tão-só que John Pocock conseguiu captar a essência da República mergulhando nas suas origens, percorrendo detidamente as fontes e descobrindo que, a partir de uma matriz comum, o ideal republicano se desenvolveu de forma diferenciada, ainda que não antagónica, dos dois lados do Atlântico.

Na base desse ideal encontra-se uma noção simples, mas que corresponde a um extraordinário avanço da civilização europeia. A República resolveu o problema da compatibilização entre autoridade e liberdade fazendo com que cada um, cada habitante da cidade, participe nas decisões através das quais é governado. Daqui resulta um modelo que coloca o cidadão no centro do processo político, o que se traduz, desde logo, no estabelecimento de relações de igualdade entre os homens e, por outro lado, no incremento do grau de exigência cívica e de responsabilização individual de cada membro da República. Só aquele que sente fazer parte da República é capaz de assumir na plenitude os seus deveres de cidadania.

As repúblicas atravessam «momentos maquiavélicos», para tomar um conceito cunhado por John Pocock no livro que o celebrizou.

No mundo em que vivemos, o que verdadeiramente está em causa, nos «momentos maquiavélicos», não é, em regra, a sobrevivência das repúblicas, mas a necessidade de reinvenção dos valores que lhes dão forma enquanto modelo político ideal de conciliação entre autoridade e liberdade. Nos nossos dias, é imperiosa a necessidade de reconstrução do princípio da virtude republicana, o que se afigura tanto mais difícil quanto, por um lado, a Justiça tem dificuldade em ressurgir aos olhos dos cidadãos como um valor capaz de triunfar sobre a corrupção e, por outro lado, a sociedade alimenta e segrega padrões de conduta que, em muitos casos, se situam nos antípodas dos ideais do republicanismo.
Enquanto isso, o modelo do Estado social, que garantiu a paz e a estabilidade das sociedades ocidentais do pós-guerra, enfrenta novos e sérios desafios. Esse modelo de desenvolvimento e de integração social pôde prosperar graças à convergência de dois elementos: elevados índices de natalidade e níveis de crescimento económico absolutamente inéditos.

Desta forma, foi possível que os trabalhadores no activo, com empregos estáveis, assegurassem níveis de bem-estar suficientes para si próprios e, do mesmo passo, fossem capazes de custear, através dos seus impostos, as prestações sociais que garantiam as reformas da geração precedente e a escolarização e a empregabilidade da geração seguinte. A coesão social assentava neste pacto de cidadania intergeracional, um contrato de que o Estado era o garante e fiel depositário, através de um sistema de redistribuição da riqueza que mereceu o apoio consensual dos agentes políticos dos vários quadrantes, de empregadores e trabalhadores, das associações patronais e dos sindicatos.

Os fundamentos deste modelo, a que poderíamos chamar a «República social», no qual reside o inegável sucesso do projecto de uma Europa unida, constituem um dos grandes alicerces das democracias contemporâneas.

No entanto, as quebras de natalidade que se verificam na generalidade dos países desenvolvidos têm vindo a lançar a dúvida sobre a capacidade de cada geração assegurar as responsabilidades que lhe cabem para com a geração que a antecede e para com aquela que se lhe segue.

Paradoxalmente, uma das causas da baixa natalidade é justamente o aumento do bem-estar material. De facto, não podemos deixar de nos interrogar sobre a mudança ocorrida nas últimas décadas: é quando existem, aparentemente, melhores condições para ter mais filhos, condição essencial para a reposição das gerações, que os níveis de natalidade decrescem de forma significativa e até alarmante.

Por outro lado, as taxas de crescimento económico contínuo e sustentado em que se apoiou o modelo europeu de redistribuição da riqueza sofreram um forte abalo na última década.

Tudo mudou a partir do momento em que o Ocidente foi confrontado com algo que até aí parecia desconhecer: a sua dependência energética face a países situados noutros pontos do globo. Por muito que tenhamos sido capazes de absorver os piores efeitos dos choques petrolíferos que marcaram as últimas décadas do século XX, descobrimo-nos, subitamente, mais frágeis, mais vulneráveis. A dependência energética da Europa face a países que não se situam na sua área geocultural, nem possuem o mesmo grau de democraticidade nem de estabilidade política, deve representar um sério aviso para os decisores políticos que possuam do mundo uma visão de longo alcance.

Se situarmos as nossas repúblicas no contexto mais vasto do mundo globalizado, perceberemos que a competitividade à escala planetária se encontra centrada nos aspectos económicos, fazendo tábua rasa de factores como a falta de qualidade da democracia, a injustiça social e a ausência de protecção dos mais desfavorecidos, a precariedade das condições de trabalho ou a degradação maciça do ambiente. Por outras palavras, o comércio livre faz-se, à escala planetária, entre nações que não possuem os mesmos padrões de exigência em termos políticos, sociais ou ambientais. A concorrência encontra-se distorcida por esta diferença de pontos de partida entre sociedades onde as expectativas dos cidadãos são muito elevadas e sociedades que só agora começam a emergir para os valores da democracia, da cidadania social e da preservação ambiental.

A isto acresce que a reinvenção do modelo de crescimento europeu – do qual depende, não tenhamos dúvidas, a própria estabilidade em que assentam as nossas democracias –, depara com novos constrangimentos. A necessidade de preservação do equilíbrio ecológico impõe a descoberta de novas formas de produção, menos agressivas para o ambiente. A Europa pós-industrial tem de saber recriar-se como espaço de produção de bens e não apenas como lugar de prestação de serviços.

Por outro lado, o Estado contemporâneo manifesta sérias dificuldades em manter um contrato social que seja, também ele, um contrato de justiça intergeracional. A precarização do emprego leva a que haja cada vez mais jovens com «vidas adiadas», na espera de melhores dias que tardam a chegar, aguardando indefinidamente pela oportunidade para conquistar um emprego gratificante, para constituir família, para possuir um espaço próprio para viver.

Este é outro dos paradoxos do nosso tempo: os jovens são cada vez mais qualificados, beneficiam cada vez mais de uma formação ampla e diversificada, têm um contacto com o exterior e com outras realidades muito superior ao das gerações precedentes, comunicam à velocidade de segundos com outros jovens a milhares de quilómetros, movem-se com um à-vontade surpreendente no mundo das novas tecnologias. E, no entanto, enfrentam sérias dificuldades para satisfazer as aspirações que os seus pais, com maior ou menor sucesso, conseguiam realizar com relativa tranquilidade: obter um emprego seguro, possuir uma casa, constituir família.

Tudo isto pode levar a uma grave quebra de confiança dos jovens nas instituições e nos decisores políticos, pondo em causa, no limite, a qualidade das nossas democracias. A abstenção eleitoral, o alheamento cívico, o descrédito dos governantes, a ausência de líderes com uma visão estratégica são elementos de deslegitimação política, mas também social e cultural, das nossas repúblicas. São cada vez mais aqueles que se excluem a si próprios da cidadania activa, o que naturalmente ameaça a noção de democracia como autogoverno da cidade e a ideia de República como partilha de um destino comum.

É urgente, pois, fazer um esforço de aprofundamento da dimensão social do Estado. Não há dúvida de que, se os direitos fundamentais de primeira geração, inscritos nos nossos textos constitucionais, se encontram consolidados e sedimentados, existe ainda um longo caminho a percorrer para concretizar plenamente os direitos económicos, sociais e culturais. Há que ter presente que, no nosso tempo, não podemos fazer uma cisão entre cidadania política e cidadania social, para não falarmos de outras dimensões do conceito, como a cidadania ambiental. O princípio democrático não é separável do princípio da socialidade, do mesmo modo que o Estado de direito deve ser um Estado social de direito. A instauração de políticas sociais activas, com efeito, não se destina apenas a promover a igualdade ou a justiça social; é também um requisito essencial de uma democracia inclusiva. Para ser política, a democracia tem hoje de ser social, económica e cultural.

Ao contrário do que por vezes se supõe, o Estado social não é hostil ao mercado. Foi precisamente a dimensão social do Estado, a par da sua função reguladora, que permitiu a sobrevivência da economia de mercado após sucessivas crises e que assegurou a existência de «válvulas de segurança» para as tensões sociais que a dinâmica do capitalismo ciclicamente tende a produzir.

Porém, se a vertente social do Estado se encontra no nosso tempo posta à prova, o mesmo se dirá da sua função reguladora. Essa é, porventura, a principal lição a retirar da recente crise económica e financeira. O Estado regulador foi incapaz de desempenhar eficazmente a sua função de fiscalização do funcionamento livre dos mercados e de prevenir comportamentos pouco éticos – pouco republicanos – de alguns agentes económicos.

Perante as falhas da supervisão, o Estado regulador teve de ceder o lugar, em certos momentos mais críticos, ao Estado interventor.

Simplesmente, a intervenção do Estado na economia, ultrapassados certos limites, põe em causa o futuro de uma sociedade aberta e é hoje reconhecida como utópica e irrealista. Por uma razão singela: mesmo que o quisesse, o Estado não dispõe de meios para intervir activamente em todos os sectores de economia, pois esta adquiriu um nível inédito de complexidade e, por outro lado, foi objecto de um processo de globalização que torna o mercado cada vez menos susceptível de apropriação através de decisões políticas.

Senhoras e Senhores,

Assistimos, no nosso tempo, a um sobressalto cívico e político, o qual, sem pôr em causa propriamente a sobrevivência da República, se aproxima do conceito de «momento maquiavélico» de John Pocock. As repúblicas contemporâneas não são confrontadas com a sua finitude, enquanto tais, como acontece nos «momentos maquiavélicos». Mas são, indubitavelmente, obrigadas a repensar os fundamentos e os pressupostos que as fizeram prosperar e que lhes garantiram a perenidade estável em que viveram desde o pós-guerra.

Impõe-se, nestas ocasiões, o caminho republicano do «regresso aos princípios», o que não pressupõe uma visão nostálgica ou passadista do pretérito colectivo.

É à luz de uma visão de «passado como futuro», para usar uma expressão de Jürgen Habermas, que as comemorações do centenário da República adquirem sentido útil. De nada vale, de facto, comemorar por comemorar. A celebração do passado, justamente para não ser passadista ou retrógrada, tem de possuir uma dimensão prospectiva. Regressar aos princípios, no caso do republicanismo, é reactualizar os valores de um civismo ético que contém, por um lado, exigências de dignidade pessoal e, por outro, imperativos de envolvimento comunitário. Há que renovar, em todos os domínios da actividade humana, começando pela actividade política, os princípios da autenticidade, da transparência na acção, do serviço empenhado à res publica, um serviço que reclama um conhecimento profundo dos problemas da sociedade e do Estado, um contacto directo com a realidade, uma relação de confiança e proximidade do poder com os cidadãos. Há que buscar exemplos, referências. Urge redescobrir e aprofundar o empenho republicano na escola e na formação cívica dos cidadãos.

É da Universidade que têm de surgir as respostas para as perplexidades que o tempo actual nos coloca. Só a reflexão académica, serena e rigorosa, livre de paixões, não atravessada pelas querelas da luta partidária quotidiana, só a reflexão académica séria, repito, será capaz de apontar caminhos para os desafios profundos que confrontam as repúblicas com os seus «momentos maquiavélicos».

A Universidade de Coimbra dá-nos um bom exemplo do modo como é possível proceder com sucesso a um «regresso aos princípios». Sem perder de vista o seu historial de séculos e a sua genealogia ilustre, Coimbra foi capaz de instaurar novas dinâmicas de gestão, abrindo-se ao mundo através de interlocutores de grande prestígio e fazendo entrar no seu governo vultos de referência da sociedade civil.

Mas para que o pensamento universitário floresça e adquira um sentido útil tem de existir, para recorrer ao conhecido conceito de Habermas, uma «ética comunicativa» entre a Academia e a sociedade e, mais precisamente, uma ética comunicativa entre a esfera pública do conhecimento e a esfera pública da decisão política.

Ao decidir celebrar o centenário da República – e, sobretudo, ao decidir fazê-lo através de um colóquio universitário – Coimbra, uma vez mais, dá-nos uma lição de sabedoria. É essencial, de facto, que as decisões que tomemos quanto ao futuro comum assentem num conhecimento sustentado dos problemas e numa percepção fundamentada das realidades. Daí a importância do contributo académico para o destino da nossa República. Daí a feliz oportunidade deste encontro, no qual me deram o privilégio de participar.

Muito obrigado.