Discurso do Presidente da República na Sessão Solene das Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas
Viana do Castelo, 10 de Junho de 2008

Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro,
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional,
Senhores Membros do Governo,
Senhores Membros do Corpo Diplomático,
Senhor Presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo,
Senhor Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações,
Senhoras e Senhores,
Portugueses,

Celebramos, este ano, o 10 de Junho nesta bela cidade de Viana do Castelo, a que Frei Luís de Sousa chamava a Viana de Portugal.

O 10 de Junho é o dia em que Portugal comemora a sua identidade e se revê naquilo que tem de melhor: no seu poeta, Luís de Camões, e na língua em que desde há séculos pensamos e comunicamos; nos seus heróis e naqueles que todos os dias, com mais ou menos notoriedade, fazem com que sintamos orgulho em continuar a ser uma nação independente.

Há poucos lugares onde a nossa identidade colectiva se imponha com tanta nitidez como aqui, nesta região em que Viana do Castelo está situada.

Aqui se forjou o galaico-português, matriz da língua-mãe, que hoje partilhamos com mais sete Estados lusófonos.

Aqui teve origem a ideia e a vontade de tomarmos o nosso destino nas nossas mãos e sermos independentes.

Aqui, sentimos todos que regressamos às nossas raízes.

Mas o 10 de Junho, conforme já afirmei em anos anteriores, não pode nem deve reduzir-se a um ritual nostálgico e passadista.

O 10 de Junho deve ser antes uma ocasião para colher da história a inspiração e a confiança de que precisamos para enfrentar o futuro.

O 10 de Junho é o momento mais apropriado para afirmar o que podemos e queremos fazer, com base naquilo que fizeram e nos legaram os que vieram antes de nós.

Somos um povo que soube erguer-se como Estado independente, afirmar a sua vontade no concerto internacional, criar instituições eficazes e duradoiras, as quais garantiram a sobrevivência da nação, apesar de todas as vicissitudes por que ela passou.

Somos, além disso, um povo que se fez ao mar, andou pelas sete partidas do mundo e por lá deixou uma obra universalmente reconhecida.

Estaremos nós, hoje em dia, à altura desse passado?

Estarão as nossas instituições, as nossas empresas, a nossa sociedade, a responder aos desafios do presente?

Estaremos nós a aproveitar cabalmente as potencialidades que os antepassados nos legaram, de modo a podermos transmitir às gerações vindouras essa realidade e essa promessa, essa vontade e esse destino?

É sabido que a escassez de recursos naturais nos acompanhou desde o princípio, determinando, inclusive, sucessivos fluxos migratórios. Há, no entanto, outro tipo de recursos que, porventura, não estaremos a utilizar tão bem como deveríamos.

No decorrer das viagens que fiz como Presidente da República e dos contactos internacionais que venho mantendo com quem nos visita, tenho verificado que a ideia de um Portugal que foi à aventura e se cruzou com gentes e culturas as mais diversas, longe de ser uma lembrança que já se esfumou no tempo, é, pelo contrário, uma imagem constante, que permanece viva.

Da Europa aos Estados Unidos, da Índia ao Brasil, de Moçambique aos vários Estados do Médio Oriente, perduram não apenas vestígios materiais e espirituais da nossa presença nessas terras, mas, acima de tudo, um reconhecimento generalizado pela capacidade que temos de nos integrar e, ao mesmo tempo, de nos abrir aos outros.

Esse universalismo, que se tomou a nossa verdadeira imagem de marca, encontra-se alicerçado na História.

Portugal não se limitou a andar pelo mundo e a conhecer vagamente outros povos com quem se defrontou ou negociou.

Portugal entendeu-se e misturou-se realmente com os outros, criou raízes fora de casa, lançou as bases para novas nações e pontes para o diálogo internacional que hoje tanto reivindicamos.

Mas o universalismo português é ainda, na actualidade, um facto bem visível. Um universalismo como aquele de que fala Eduardo Lourenço, quando nos diz “O Universal não é um espaço, é a universalidade do olhar que o pensa”.

Aliás, seria estranho que uma experiência tão vasta e tão prolongada de vivência universalista não tivesse deixado marcas na nossa maneira de ser, de estar e de ver o mundo.

Senhoras e Senhores,

Prova cabal da actualidade do nosso universalismo são as comunidades de emigrantes portugueses, ou de origem portuguesa, frequentemente apresentadas como exemplo de seriedade por aqueles mesmos com quem trabalham e em toda a parte elogiados pela sua capacidade empreendedora.

A facilidade com que se adaptam a meios por vezes bem diferentes, mantendo ao mesmo tempo uma forte ligação às suas origens, não é, por certo, indiferente ao sucesso de muitos emigrantes

Se o dia de hoje, Dia de Portugal e de Camões, se chama também o Dia das Comunidades, é porque se reconhece que elas são, de pleno direito, parte integrante da Pátria comum.

As comunidades portuguesas de emigrantes são a mais estável representação da nossa gente e da nossa cultura além fronteiras, uma cultura que se distingue e afirma a sua identidade dialogando com a diferença.

Os nossos militares e as forças de segurança que têm sido chamadas a desempenhar missões de paz e de interposição em zonas de crise constituem, pela sua actuação, um outro exemplo vivo da facilidade que os portugueses possuem de se integrar.

Os muitos elogios que têm recebido são unânimes em registar o profissionalismo, a disciplina e a bravura desses soldados, mas também a forma singular como eles se relacionam com as populações locais e que os toma particularmente dotados para servir de mediadores em zonas de conflito.

Existem, além disso, sinais de que uma nova geração de empresários começa a moldar-se ao mercado global e a criar de raiz, ou a reformular, empresas capazes de competir onde quer que se lhes deparem oportunidades nas respectivas áreas de negócios.

Portugal tem contribuído activamente para a consolidação do projecto europeu, um projecto que é decisivo, não apenas para o desenvolvimento e a concórdia no Velho Continente, mas também para o desanuviamento internacional e a afirmação dos valores da paz e do diálogo entre todos os povos.

Das três vezes que exerceu a Presidência da União, Portugal manifestou sempre a competência, a diplomacia e o engenho bastantes para que se encontrassem acordos e decisões assinaláveis.

O Tratado de Lisboa representa uma inequívoca vitória da diplomacia e é um instrumento decisivo para a saída do relativo impasse que ameaçava a construção europeia, após a rejeição do anterior tratado por parte de alguns países.

A par da vertente institucional, a última Presidência portuguesa saldou-se igualmente por importantes avanços no relacionamento externo da União. E esses avanços, em particular as cimeiras com o Brasil, Índia, China, Rússia, Ucrânia e com a África e a ASEAN, levam todos, bem nítidas, as impressões digitais portuguesas.

Atrevo-me a pensar que um tal sucesso não seria possível se não fosse a nossa facilidade de interlocução e os laços especiais que nos unem a tantos povos, em particular aqueles que têm o português como língua oficial e com os quais partilhamos uma profunda afinidade.

O universalismo dos portugueses é, certamente, um privilégio que herdámos, mas é também uma experiência que temos sabido cultivar e um esteio sobre o qual podemos e devemos, com realismo, projectar o nosso futuro.

Todas estas manifestações, e outras de teor idêntico, levam-me a perguntar se não estaremos a desperdiçar algumas das vantagens que esse recurso nos poderia trazer.

Senhoras e Senhores,

Num mundo como aquele em que vivemos hoje, nunca será demais realçar o valor estratégico que representa para a nossa afirmação internacional, para o futuro das nossas empresas, para o bem estar económico e social dos nossos cidadãos, este capital de simpatia, esta receptividade com que podemos contar junto de tantos povos, independentemente das convicções políticas ou religiosas de cada um e do respectivo grau de desenvolvimento económico e social.

Os problemas com que todos os países estão hoje confrontados, pela sua própria natureza planetária, apelam a uma maior concertação internacional e a uma busca permanente de consensos aos mais diversos níveis.

Portugal tem dado sobejas provas de uma natural aptidão para promover e facilitar a negociação e aproximação entre povos, quer ao nível regional, quer ao nível global.

Sem a cooperação regional e global entre os Estados, não será possível fazer face à crescente ameaça que representam as conhecidas assimetrias económicas, sociais e demográficas, ou a desregulação nos mercados, designadamente dos combustíveis e dos produtos alimentares.

Não possuindo, embora, os meios de que outros dispõem, seria contudo um erro grave, no mundo altamente competitivo que é o nosso, ignorar ou desprezar aqueles que temos realmente e que todos nos reconhecem.

Urge, pois, investir na nossa rede diplomática e consular, dotando-a de capacidades que lhe permitam corresponder cabalmente ao que dela se espera, enquanto activo fundamental para a promoção e defesa dos nossos interesses políticos, económicos e culturais, no apoio às nossas empresas e aos nossos cidadãos, designadamente às comunidades portuguesas e luso-descendentes.

É necessário aproveitar a influência, apoiar a inserção política e valorizar a capacidade empreendedora dos cinco milhões de compatriotas que residem fora do País.

É necessário continuar a apoiar a internacionalização das nossas empresas, não só a partir de Portugal, mas também nos países que elas escolhem como destino, e em simultâneo reforçar decisivamente a nossa capacidade de captação de investimentos estrangeiros.

Temos, imperativamente, de prosseguir a inserção das nossas universidades e centros de investigação nas redes internacionais em que hoje se produz o conhecimento e a tecnologia.

Há que fortalecer e estreitar, ainda mais, as relações privilegiadas que nos ligam aos restantes Estados de língua oficial portuguesa, tirando partido não só dos conhecidos laços de amizade, mas também da coincidência de interesses e de pontos de vista sobre muitos aspectos de política internacional.

A promoção da língua portuguesa é, de resto, o tema central da próxima cimeira da CPLP, a ter lugar em Lisboa, já no próximo mês. Será importante que aí se definam estratégias de actuação conjunta.

Os mais de 200 milhões de falantes do português, dispersos um pouco por todo o mundo, já seriam suficientes para justificar uma acção concertada dos oito Estados lusófonos, tendo em vista a valorização, no quadro internacional, desse património que é a língua comum. Acresce, no entanto, que, no mundo globalizado em que vivemos, a afirmação internacional de uma língua contribui de forma decisiva para a defesa dos interesses e valores de quem nela se exprime.

Torna-se igualmente imprescindível que Portugal aprofunde a relação bilateral que mantém com cada um dos Estados lusófonos. Nas recentes visitas que fiz ao Brasil e a Moçambique, pude uma vez mais testemunhar a vontade e o interesse que esses países manifestam no reforço das parcerias já existentes, tanto ao nível político, como económico, ou cultural.

O facto de nos entendermos na mesma língua e de partilharmos uma História que foi comum durante alguns séculos não é irrelevante.

Nem faria sentido os portugueses menosprezarem esse facto, quando por toda a parte ele é sublinhado, com enorme admiração e aplauso.

Em política internacional, as amizades contam.

No entanto, as relações entre Estados não se constroem, nem consolidam exclusivamente na base da amizade. Esta pode facilitá-las, mas não se substitui ao trabalho necessário à identificação de oportunidades de cooperação e ao esforço empenhado e persistente que a prática dessa cooperação exige.

Portugueses,

Não ignoro - e tenho-o dito algumas vezes - que o valor atribuído no plano internacional ao universalismo português depende em muito do crédito que tiver a nossa política interna.

Um país onde as instituições não sejam fiáveis; um país que não cresça e não inove, criando riqueza e oportunidades para todos; um país sem uma escola de onde saiam elites capazes de integrar a sociedade do conhecimento e lidar com as tecnologias mais avançadas, um país que não confia no seu próprio futuro, por muito que possa orgulhar-se do seu passado, dificilmente pode aspirar a uma intervenção relevante no plano externo.

Temos de começar por ser exigentes e rigorosos connosco, se queremos que o imenso património que herdámos e de que justificadamente nos orgulhamos se transforme num verdadeiro instrumento ao serviço do progresso e da prosperidade do nosso povo.

Como sabemos, comemora-se este ano o centenário do nascimento do Pe. António Vieira.

Poucos, melhor do que ele, incarnaram o universalismo português.

Missionário e político, fiel aos valores universais e patriota de gema, pensador visionário e hábil diplomata, homem de acção e prosador sublime, Vieira é a prova insofismável de que é possível pensar e fazer um Portugal maior.

Ninguém, melhor do que ele, poderá inspirar-nos uma política de horizontes rasgados, uma política que tire realmente partido de tudo quanto fomos ao longo dos tempos.

Na sua História do Futuro, Vieira clamava pelas “cousas grandes e raras que haverá que ver nesse novo descobrimento”. Assim nós saibamos, os portugueses de hoje, honrar a sua memória e acreditar, como ele acreditou, nessa História do Futuro, a História que desejamos para os nossos filhos.