Intervenção do Presidente da República na Sessão Comemorativa do Quarto Centenário do Nascimento do Padre António Vieira
Academia das Ciências, 6 de Fevereiro de 2008

Senhor Presidente da Academia das Ciências de Lisboa,
Senhor Presidente da Comissão Organizadora de 2008 Ano Vieirino,
Senhores Académicos,
Senhores Professores,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,

É para mim um motivo de grande regozijo estar aqui hoje, na Academia das Ciências, a presidir à sessão com se que se iniciam as comemorações do quarto centenário do nascimento do Padre António Vieira.

Evocar a memória de alguém que tenha deixado marcas profundas na história, pela sua actividade no domínio social, científico ou outro, é sempre gratificante.

Mas quando esse alguém se impõe à nossa consideração em tantos domínios como o Padre António Vieira, a gratificação transforma-se em justificado regozijo, senão mesmo em orgulho, para quantos se revêem nessa figura ímpar da história portuguesa.

Em Vieira, não se sabe o que mais admirar: se o virtuosismo do pregador ou a argúcia do diplomata ao serviço da independência nacional; se a grandeza e a majestade da sua escrita, que levou Fernando Pessoa a chamar-lhe «imperador da língua portuguesa», ou a tenacidade com que defendeu os direitos das populações ameríndias; se o realismo do conselheiro do rei, a quem se deve o restabelecimento dos contactos com a colónia judia na Holanda, ou o visionário que sonhou para Portugal um quinto império.

Vieira foi tudo isso e em tudo isso deixou impressa a assinatura do génio. Basta ler algumas das muitas páginas escritas pelo seu punho, para se confirmar não só a inteligência e a fina sensibilidade do escritor, como também a vontade, a energia e a determinação do político e do missionário.

Muitos consideram, e com razão, que os seus sermões, a par dos Lusíadas, representam os mais extraordinários monumentos alguma vez erguidos em língua portuguesa.

Mas as cartas que enviou de Roma, de Paris e de Amesterdão revelam-nos igualmente um observador arguto da cena política europeia no seu tempo. E aquelas que escreveu do Maranhão constituem um dos mais impressionantes documentos acerca da colonização do Brasil.

Toda a obra do Padre António Vieira é simultaneamente uma demonstração de génio e uma demonstração de fé.

Fé em Deus, certamente, como se pode adivinhar pelos relatos que ele próprio faz da sua actividade como missionário.

Mas fé, também, no destino de uma nação e nas possibilidades de um Estado cuja independência ele viu restaurar, em 1640, e ajudou depois a consolidar.

Numa altura em que muitos duvidavam que Portugal pudesse ainda reafirmar a sua soberania, Vieira transformou-se de pregador brilhante em diplomata incansável, servindo nas cortes da Europa o interesse do País com o mesmo empenho com que se dedicara antes, e voltaria mais tarde a dedicar, à evangelização das Américas.

Fé, além disso, na condição humana: a corrupção e outros males contra os quais frequentemente se insurgia do púlpito não lhe fizeram perder a confiança; os preconceitos dominantes não o impediram de dialogar com todos aqueles com quem se cruzou.

Para lá das diferenças de civilização, Vieira acreditou no homem que existia em cada um dos índios do Brasil, a quem defendeu intransigentemente da avidez de alguns colonos.

Para lá das diferenças de religião, Vieira soube ver e denunciar a injustiça que fora a expulsão dos judeus, a tal ponto e com tanta veemência que suspeitaram que fosse um deles.

As dificuldades que Portugal conheceu no período da Restauração, tal como as suspeitas que sobre ele próprio se abateram, fazendo até com que fosse encarcerado, não chegaram para o vergar ou fazer baixar os braços. Vieira acreditou sempre.

Acreditou e agiu. Tanto ou mais do que um homem da palavra, ele foi um homem da acção. Nem mesmo quando os infortúnios da política o privaram da confiança da corte e do papel importante que aí tivera, o Padre António Vieira desistiu: voltou apenas a ser o missionário que verdadeiramente nunca deixou de ser, reservando as poucas horas livres à compilação da sua obra literária, esse legado extraordinário que haveria de nos deixar.

Ilustríssimos académicos,
Senhoras e Senhores,

Ao comemorarmos o quarto centenário do nascimento do Padre António Vieira, no começo do século XXI, o que mais nos impressiona é talvez a actualidade com que esta figura maior da nossa história continua a surgir aos nossos olhos.

Tal como acontecia há 400 anos, a diversidade dos povos e civilizações precisa hoje, porventura ainda mais, de políticos e mediadores como Vieira, que acreditem realmente no valor da pessoa humana e sejam suficientemente inspirados para estabelecer as pontes que levem à paz.

Podemos e devemos acreditar nas nossas potencialidades enquanto nação que possui uma história de oito séculos, uma história que pode, por isso mesmo, ser também uma História do Futuro.

É esta a lição que podemos retirar da vida e da obra de Vieira. Foi esta a mensagem que nos deixou e a que temos obrigação de ser fiéis, sob pena de desiludirmos todos aqueles que, tal como ele, sonharam, com ou sem império, um País dinâmico, civilizado e próspero.